Entrevista com Tomás Abreu, autor da capa do mês
Miguel Pinto entrevista Tomás Abreu acerca da sua mais recente exposição na Appleton Box, Olho ao vento, pé no mar, agora na capa do mês da Umbigo.
Miguel Pinto – Olho ao vento, pé no mar é o nome da exposição que apresentaste entre março e abril do ano passado na Appleton Box, e que agora chega à capa do mês da Umbigo (ainda que falte aqui uma das obras que apresentaste). Como nasceu esta produção?
Tomás Abreu – O projeto nasceu com a vontade de pôr em diálogo peças distintas. Desenvolveu-se desde o fim de 2019 e atravessou uma fase onde vivia no Porto e ainda não tinha um espaço de trabalho. Pintei e esculpi madeira e pedra em casa, ou em terraços de amigs. Tive a feliz oportunidade de levar o projeto para as instalações da Artworks, onde com o seu apoio técnico, pude finalizar a produção e desenvolver um novo projeto que ainda não apresentei, que recorre a um dispositivo de ar comprimido para criar a sonoplastia de um filme.
MP – O mar é, inevitavelmente, um tema-chave nesta exposição – não só pensando nas esparsas abstrações que apresentas na série Nunca, ou nos seixos que convocas em Onda Partícula, cujo toque quase impercetível me lembrou da minimalidade intermitente das Offshore Turbines que apresentaste na Kubikgallery em 2020. Que mar é este que perpassa pelos teus trabalhos?
TA – Gosto de trabalhar com o que me rodeia, e visito o mar regularmente. Somos por essência compostos por água.
Na pintura exploro ideias de fotografia e abstração, e tento materializar algo imaterial e inexplicável, como se fosse um tempo. As esparsas abstrações nas pinturas Nunca podem ser vistas como tentativas de replicar realisticamente pele de baleia, em formatos grandes de ecrãs desligados. Partem em busca de uma imagem fotográfica e abstrata, que não existe. Tornam-se um desenho lento, por vezes cego por vezes cuidado. Uma das pinturas é incertamente mais cósmica. A maior, tem uma marca da lapa Coronula diadema, que apenas vive nas baleias. A terceira é mais celestial. Todas exigiram muitas horas de imersão.
Onda partícula, teve um processo que durou 2 anos. Começou com várias caminhadas à beira mar na região Norte, à procura da pedra mais oval – Um bom exercício para os olhos e as mãos. Depois de mais de um ano de várias praias, e a colecionar muitos seixos, encontrei uma praia acima de São Bartolomeu do Mar. Invés de areia, pedras muito ovais. A segunda vez que regressei a esta praia, para finalizar a seleção, um senhor grisalho passou por mim à beira mar e disse “O segredo é não desistir”. Pensei no muito tempo que pareceu perdido em vão. Felizmente sei que não foi. Faz parte de um processo de trabalho que gosta de serendipidade, que revela erros e imprevistos, e que pede incontáveis horas de reconstrução.
Offshore turbines, foi uma experiência entre a pintura e imagem em movimento. A ideia surgiu durante um fim de semana em Vila Praia de Âncora. A varanda da casa onde dormia tinha uma vista ampla do mar, onde durante a noite, mesmo sobre a linha do horizonte, três pontos vermelhos piscam sobre três reticências amarelas. Era uma imagem muito hipnótica, num local muito ventoso. As luzes eram demasiado altas para serem de barcos. Lembrei-me de ter lido algo sobre um projeto da EDP de turbinas eólicas em alto mar. Pensei no vento, e no sol. E em fusão nuclear. Pensei sobre armazenamento de energia. Pensei na necessidade de extensa investigação sobre o impacto ambiental que é desconhecido, e quão mau seria invadirem os oceanos com estruturas gigantes. Pensei sobre capitalismo e apropriação. Pensei em más jogadas dos maus governos do PS e PSD. Pensei como seria incrível se a extinção chegasse às contas off-shore, e de como o mundo poderia ser melhor se estas turbinas parassem. Quando regressei a casa, engracei com a discrepante ideia do pintor purista que monta leds, um microcomputador e uma bateria no verso de uma pintura paisagística. Desafiei-me a pintar aquela imagem. Com o apoio de um amigo e através de um algoritmo, um sistema eletrónico replica a sequência de luzes intermitentes. As torres da recente estação eólica têm hélices com 80 metros de comprimento. Aqui pode ser estar a impercetibilidade que referiste, em escala. O que aparenta ser pequeno, pode ser na verdade muito grande e vice-versa. Como o mar visto do espaço, ou uma uva. Ou uma fotografia.
MP – Esta tendência para um imaginário natural parece-me motivo recorrente nos teus trabalhos. Penso nos ambientes e atmosferas que habitam o conceito desta exposição, mas que estão também presentes ao longo da tua produção artística – os teus primeiros trabalhos são instalações que parecem suspensas no ar, e onde operaste fora de espaços expositivos. Existe para ti uma recorrente necessidade de voltar à natureza?
TA – Na produção, creio que nem sempre, mas pessoalmente acho que sim. Sempre vivi em cidades e quando posso saio em passeios. Idealmente semanalmente, mas por vezes é mensal. Posso chamar-lhe lavar os olhos na terra. Ou ir só tocar no mar. Respirar fundo ar limpo. Lembro-me de um momento muito bonito numa cascata, quando reparei uma teia de aranha suspensa entre árvores altas, que apenas é percetível quando reflete o sol. Já me encontrei a caminhar descalço pelo centro de um riacho, sujeito a ameaçar um lacrau escondido, cercado por aranhas e alfaiates, a ver as danças de libelinhas azuis e verdes. Já me perdi numa serra num raio de dezenas de kms a comer massa com um garfo-pau.
O conceito de rutura metabólica pode responder bem à tua pergunta. O capitalismo desconecta as pessoas da Terra, e a apropriação está em todo o lado. Hoje parece-me que o autoritarismo quer inteligência artificial generalizada, e ninguém a plantar batatas. Enquanto pessoa acho que há um grande problema com a postura antropocêntrica dos humanos e dos estados e das grandes indústrias que lhes dispõe abundância. É uma cegueira. As abelhas são muito mais importantes. A inteligência humana parece louvável, mas somos a espécie que mais polui. Se as nossas reciclagens genéticas forem um dia extintas, a terra continua em órbita e com sorte fossiliza-nos. Enquanto artista não consigo ver a arte como uma forma de salvar o mundo, nem me parece bem politizar o trabalho artístico perante algo alheio ao seu gesto e expressão. Não é um veículo de consciencialização, nem precisa de grande legendagem. É uma multilinguagem da cultura que surge da experiência cognitiva e sensorial. Parece-me que lida com algo visceral, íntimo e partilhável. Continuo a procurar inspiração na natureza, e a estudar várias ciências, mas a verdade é que a encontro perdida na berma do passeio. E nas pessoas. Está em todo o lado. E em todos os corpos, em toda a escala. O trabalho é outro corpo. Um desconhecimento indefinível, e disruptivo.
MP – Fórmios Inócuos, uma das obras que apresentaste nesta exposição, parece-me estabelecer uma relação formal muito concreta com Yucca, uma outra obra da tua autoria que apresentaste em 2020 no Espaço MIRA no Porto. Existe alguma relação entre as duas obras? O que é que te atraiu nestas formas?
TA – Yucca é um estudo para Fórmios inócuos. Consiste numa cantoneira de alumínio, pintada e lacada, distorcida com mãos e martelo, e trabalhadas com uma serra. Retrata uma folha seca da planta ornamental mais comum no Porto. Fórmios inócuos (Phormium Tenax) são cantoneiras em cobre, trabalhadas da mesma forma, e que por vias da oxidação forçada – um fumeiro com amônia, sal e vinagre – fixam-se diferentes tons de azul. Estes exercícios surgiram da vontade de trabalhar metal. Folhas grandes e secas pareceram-me desenhos bonitos. Gosto de plantas. Entre 2019-20 fiz o projeto filme Praga regada, sobre uma flor que viaja com o vento.
MP – Futuramente, que projetos tens planeados?
TA – Tenho pintado e vou apresentar pinturas depois deste Verão. Planeio umas rodagens também para este ano. Tenho editado um livro com fotografias e umas palavras, e tenho passado muito tempo à volta de instalação e escultura.