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Entrevista a Marta Jecu, curadora da exposição Stone Alive

Stone Alive, no Museu Geológico de Lisboa, é um projeto curatorial que procura a tradução da linguagem adormecida das pedras, dos seus usos ao longo dos tempos, da sua apropriação e do modo como a arte contemporânea interpreta essa linguagem. É um projeto longo, uma exposição que requer tempo e disponibilidade, explorando cada recanto do museu, cada vitrine, ossada e espécime.

A curadora Marta Jecu fala-nos sobre a génese de Stone Alive, a sua itinerância, as questões e temas tangenciais ao projeto e o contributo dos artistas Claire de Santa Coloma, Fernanda Fragateiro, Gabriel Leger, Gilles Zark, Luca Pozzi, Marta Alvim, Martinho Mendes, Pedro Sequeira, Raphael Denis, Rita Gaspar Vieira, Rosell Meseguer, Sérgio Carronha e Vincent Voillat para este ciclo.

José Pardal Pina – “A interpretação cultural da pedra” que a Marta tem vindo a trabalhar neste ciclo com o mesmo nome é uma forma de ler as pedras, de despertar uma voz adormecida? O que significa realmente este título e como como tem vindo a ser desenvolvido?

Marta Jecu – As duas exposições STONE ALIVE – uma no Museu Geológico de Lisboa (4 de julho a 4 de agosto) e uma segunda exposição no Museu de Mineralogia em Paris (1 de setembro a 10 de novembro), ambas incluídas no programa oficial da Temporada França-Portugal 2022, foram precedidas por duas exposições: A CULTURAL INTERPRETATION OF STONE PART I(Galerie Cabinet d’Ulysse, Marselha, 2019) e A CULTURAL INTERPRETATION OF STONE PART II (Galeria da Livraria Sá da Costa, Lisboa, 2020). Estes quatro projetos (e esperamos que esta série continue nos próximos anos) visam mapear diferentes abordagens possíveis para a pedra. O ponto de partida deste é que a pedra é, em termos físicos, o material mais antigo e persistente da história da humanidade, bem como a matéria paradigmática da arte. Pese embora a sua materialidade compacta e impenetrável (que justifica a sua resistência no tempo e no espaço), a pedra está a ser reinventada na arte contemporânea e a reemergir de forma desmaterializada, virtualizada e tecnologicamente aprimorada. O estudo desta nova materialidade – no fundo, a nova maneira como esta matéria artística está a ser repensada na arte contemporânea – tem sido o ponto de partida deste projeto. Portanto, Stone Alive quer mostrar a nova mutabilidade, transmutabilidade e versatilidade desta velha matéria.

JPP – As pedras pedem toque, afago. A perceção das pedras é feita com a mão, demoradamente, de vários ângulos e aproximações. De que forma reflete esta exposição a dimensão háptica das pedras?

MJ – Na exposição, a pedra não é questionada como presença material, mas sim como vetor de informação – uma cápsula que transporta uma consciência holística e a pluralidade de formas interconectadas de estar no tempo e espaço: humana, não-humana, vegetal, mineral. A exposição traça o pensamento sobre a pedra e a sua relevância e potencial na cultura contemporânea, em vez de ser uma coleção de ‘pedras’. Razão pela qual elas praticamente não aparecem nesta exposição, exceto sob uma forma desmaterializada e combinada.

JPP – O Museu Geológico é, do ponto de vista dos dispositivos, um edifício pesado, que conserva ainda vitrinas antigas, possantes, constituindo, portanto, um dos raros casos de “museu de museus”. Ou seja, é um museu que faz a musealização dos modos de expositivos de antigamente. Qual foi o maior desafio dentro deste museu, do ponto de vista da curadoria e do desenho expositivo?

MJ – Considero que esta exposição faz parte da minha pesquisa sobre como a arte contemporânea pode oferecer soluções para o legado complexo abordado pela museologia enquanto disciplina. Todos sabemos que a museologia tem sido fortemente ligada à investigação e exploração colonial. Este legado, que é perpetuado pelos museus históricos, deve refletir-se de forma crítica. Os museus, enquanto entidades associadas ao poder, foram sempre vinculados a agendas políticas e utilizados como meios para transmitir, de forma invisível, a forma como o presente e o passado devem ser lidos. A arte contemporânea não serve apenas para tornar visível a forma como o discurso visual transporta o conteúdo ideológico, mas também para propor novas formas de perceção do património. Esta exposição incide menos sobre a problematização destas coleções particulares (que se baseiam em extrações provenientes principalmente de Lisboa e Portugal), e mais sobre a exploração mineral noutras áreas culturais. Apresenta exemplos culturais em que surgem formas de fusão entre a vida humana e não-humana (mineral, vegetal) que podem reparar e restaurar este difícil legado, com o qual continuamos a confrontar-nos. A exposição apresenta a inteligência não-humana como um património importante e explora situações em que esta poderia (ou pode) ser aplicada ao presente.

JPP – Stone Alive tem uma vertente ecológica inegável, embora não de forma óbvia, panfletária ou ativista, como muitas exposições com este condão “ecológico” que costumam atualmente mostrar e que acabam por sublinhar alguns mal-entendidos e alguma redundância. Concorda com Timothy Morton quando este refere que toda a arte é ecológica?

MJ – Muito obrigado por esta referência! É verdade, os temas ecológicos na Arte acabam por ser meras soluções retóricas para a auto-legitimação. Nesse sentido, julgo que os trabalhos sustentados na investigação podem ser abordagens úteis, como o de Martinho Mendes em Stone Alive, o qual tem estudado arquivos locais e práticas vernaculares ecológicas na Madeira. O mesmo se aplica a Herbarium de Rosell Meseguer, assente em pesquisas rigorosas e genuínas sobre plantas que ajudam a regenerar as terras submetidas a uma exploração excessiva. Como afirma Timothy Morton, nesta exposição a Arte é considerada capaz de mostrar novas formas de pensar. Nesse sentido, é regenerativa e ecológica. Muitos dos trabalhos desta exposição resultam de um esforço dos artistas para se associarem a esta consciência alargada que a pedra transporta (com a sua herança cósmica e como ligação entre o micro e o macrouniverso) – por exemplo, Sérgio Carronha ou Marta Alvim. Assim, estes trabalhos evidenciam métodos para alcançar uma consciência ecológica e holística.

JPP – Este projeto, segundo refere na folha de sala, vai depois migrar para o Musée de Minéralogy de Paris. Vai adquirir uma configuração semelhante e os mesmo artistas?

MJ – Uma vez que o projeto tem a chancela oficial da Temporada França-Portugal 2022, o objetivo é refletir sobre dois dos museus mais antigos das capitais Lisboa e Paris, que mantêm a sua exposição histórica e estão ligados à investigação. Na origem do Museu Geológico de Lisboa estão os espécimes reunidos pelas Comissões Geológicas em Portugal a partir de 1859. O Musée de Minéralogie MINES Paris foi fundado em 1783 e continua associado à Universidade, perto do Jardin du Luxembourg. No geral, podemos falar de uma exposição itinerante com um conceito e uma mensagem uniformes. Mas, como estas duas exposições são site-specific, algumas das obras foram alteradas para se adaptarem a cada museu.

JPP – Considera que esta necessidade de regressar às pedras, aos minerais, aos pigmentos primitivos e naturais é natural em todos os artistas ou denuncia um engajamento e uma necessidade mais profunda de voltar à plasticidade matricial que a natureza nos deu?

MJ – Acredito que estamos perante a necessidade de uma transferência de informação mais intensa entre nós e outras formas de inteligência e de ser. Ao trabalhar com os artistas, senti a necessidade de explorar a articulação de várias formas de estar no tempo e espaço, bem como as possibilidades de aceder a esta tradição de conhecimento e inteligência não-humanos. Por exemplo, os trabalhos de Vincent Voillat, Gilles Zark ou Luca Pozzi podem ser vistos como tentativas de visualizar, analisar e assumir isso mesmo. São ensaios sobre como podemos utilizar no presente esta escala alargada que a pedra transporta e a informação que vincula. Em alguns dos trabalhos, entende-se isto como uma possível contribuição para promover a justiça moral e ecológica (Rosell Meseguer). Noutros, para a transformação interior e pessoal (Marta Alvim). E também há alguns (Rita Gaspar Vieira, Pedro Sequeira) que pensam sobre o que a matéria e a materialidade representam na sua essência e importância para o nosso desenvolvimento espiritual.

JPP – A conferência Deep Life. Reimagining our Fossil Modernity faz também parte deste projeto curatorial. Pode relatar-nos um pouco o que foi dito por Giovanbattista Tusa nesta conferência?

MJ – O programa correspondente à exposição foi incluído, assim como uma visita guiada com uma descrição áudio para invisuais e deficientes visuais (por Eliana Franco e Roberta Gonçalves). Fez parte de um programa de descrição áudio liderado por Eliane Franco, que penso ser uma contribuição significativa no terreno. Afinal, a arte contemporânea é muito pouco disponibilizada para pessoas com défice visual. No âmbito desta exposição, foi feita uma afirmação significativa sobre a transgressão da materialidade em relação a outras formas de conhecimento.

Por outro lado, a palestra de Giovanbattista Tusa revelou-se teoricamente essencial para a conjuntura, dado o conteúdo que esta exposição transmitiu. Segue-se um resumo da sua palestra:

Nos últimos anos temos assistido a uma expansão do conceito de vida, que começou a incluir formas de existência não imediatamente referenciáveis aos organismos estudados nas ciências biológicas. Isto implica a imersão noutras temporalidades diferentes das da sociedade humana e das suas implicações imediatas. Giovanbattista Tusa apresentará as profundas implicações das dimensões desumanas que habitam a nossa vida e as possibilidades enraizadas nesta mudança de perspetiva, que vai para além do imaginário fóssil que tem caracterizado a modernidade ocidental nos últimos séculos. Há vários aspetos importantes nesta mudança que envolvem uma renovação das relações ecológicas. O primeiro é o reconhecimento de que a responsabilidade humana pela sua prosperidade não pode ser dissociada de processos ecológicos mais vastos, em particular os da multiplicidade ecológica. O outro é estarmos a deixar para trás o sujeito pensante jurídico e a assistir à emergência de um sujeito sensível que apela a uma extensão radical dos direitos (não)humanos a entidades não-humanas, que partilham uma capacidade material de afeto e agência neste âmbito de convivência a que chamamos “mundo”. (Giovanbattista Tusa).

Estas duas exposições têm sido recebidas com muito entusiasmo pelas duas direções museológicas de Lisboa e Paris, pela equipa do museu em Lisboa e pelo laboratório de investigação LNEG, a quem gostaria de agradecer profundamente. Muito obrigada a todos os artistas por partilharem gentilmente o seu trabalho e à temporada França-Portugal pelo seu apoio e também à Umbigo por esta entrevista e interesse.

Até 4 de agosto no Museu Geológico de Lisboa e de 1 de setembro a 10 de novembro no Musée de Minéralogie de Paris.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

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