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Cultura&Natureza em primeiro lugar: a experiência de Walk&Talk

Sob o título In the First Place (Em primeiro lugar), realizou-se até ao dia 23 de julho a décima primeira edição do Festival Walk&Talk (W&T) na ilha de São Miguel, nos Açores: um mergulho entre arte e natureza, música e espetáculos.

Seguindo metaforicamente o imprevisível clima açoriano, dado a mudanças repentinas, o W&T transforma-se a cada ano, quer nos temas, quer nos lugares onde floresce o seu programa, concretizado com os apoios do Governo Autónomo dos Açores e da DGArtes.

Parceiros desta edição do W&T são o Arquipélago-Centro de Artes Contemporâneas, que hospeda no espaço Blackbox a instalação Unidade de Estela Oliva (CLON) e Ana Quiroga, e o vaga-espaço de arte e conhecimento, nascido em Ponta Delgada durante a pandemia, cujo propósito é servir como um pavilhão livre e aberto às pessoas, tal como faz precisamente o palco temporário do W&T, a acompanhar as noites e os dias do Festival à frente do Teatro Micaelense, no centro da cidade.

Ora, após este preâmbulo, debrucemo-nos sobre a pergunta que dá o nome ao W&T 2022: o que é que vem em primeiro lugar? Ou, mais exatamente, o que é para nós o primeiro lugar? Várias são as hipóteses que nos assaltam o pensamento ao nos deixarmos submergir no grande mar pelo qual o Walk & Talk se espraia.

Em primeiro lugar, é preciso pensar como a arte pode criar comunidades sem forçar ninguém a participar nelas, sem ter a pretensão de ter de desenvolver um papel social, como afirma Jesse James, um dos fundadores do Festival.

Em primeiro lugar, há também a defesa e a tutela do meio ambiente que, neste preciso recanto do mundo, tem uma presença por demais forte – aliás, poderemos até dizer que é ele o protagonista de toda esta história que há mais de dez anos acontece aqui.

Em primeiro lugar, é preciso criar empatia, tentar a união entre o espaço e o tempo, conjugar a complexidade do presente com a nossa vida, juízos e sentimentos.

Em primeiro lugar – lembra-nos Irene Campolmi, curadora convidada desta edição do W&T –, não chegam as raças, confins, ou teoremas já escritos:  devemos estar permanentemente abertos à complexidade do mundo, impossível de aprisionar.

É necessário aprender a lidar com esta heterogeneidade; é com este desafio quotidiano que devemos brincar de uma maneira séria, para nos encontrarmos a nós próprios como parte de todo o universo, sendo hóspedes dele. É por essa razão que o Festival deseja ser inclusivo, no melhor sentido do termo: uma membrana permeável e sustentável com o exterior.

“O festival deseja posicionar-se como spot de uma nova agregação entre os moradores da ilha, os residentes temporários e quem está a passar por aqui, misturando todos num labirinto tão incerto e precário como este, conjugando o ambiente deslumbrante da ilha com a complexidade do mundo atual”, referem os outros criadores e curadores do Festival, Luís Brum e Sofia Carolina Botelho.

Não é por acaso que o W&T promove igualmente o PARES, Programa de Apoio à Atividade Artística nos Açores, cuja finalidade é apoiar os agentes culturais que desenvolvam o seu trabalho na região através da atribuição de bolsas de financiamento (com um orçamento de 5 mil euros) a atividades de natureza artística.

Evento muito focado nas artes ao vivo, além da música e dos vários DJ que tocam nesta edição e do programa W&T Soundsystem, sistema de som móvel que deambula por praias e parques, o Festival propõe também diversas exposições que falam de um mundo às vezes estranho e perigoso, no qual sempre estivemos encaixados mesmo sem sabê-lo, e sobre o qual é preciso falar atualmente.

Diogo da Cruz, por exemplo, com a instalação Águas futuras, relata como a industrialização denominada green muitas vezes não é assim tão verde, bem pelo contrário.

É uma produção onde os protagonistas estão em plena crise existencial a respeito do tema do próprio roteiro, numa reflexão em redor da ostentação dos laços artificiais que compõem a nossa “máscara” profissional ou ligada à nossa identidade: a força da água desmancha-os. Afinal tinha razão Karen Blixen, quando afirmava: A cura para tudo é água salgada; suor, lágrimas ou o mar”.

Seguindo em frente, não há história que não entrelace meio ambiente e política, segundo aquilo que nos conta o ótimo trabalho de Tiago Patatas, Telemetrics: o investigador reflete sobre a instalação na ilha das Flores de um observatório militar francês para avaliar  os testes de mísseis nucleares da França que começaram nos anos 1960 e só acabaram dezenas de anos depois, e no deserto do Saara e na Polinésia,  lugares que serviram para sepultar material radioativo ou, ainda pior, para fazer experiênciasao vivo”, como aconteceu no arquipélago do Pacífico, de 1966 até 1974: foram ali realizados 46 testes nucleares atmosféricos e 150 subterrâneos. Mais de vinte anos depois, em 1995, houve uma série de manifestações em todo o mundo contra a retoma de testes na região, conseguindo com que as novas experiências fossem interrompidas no ano seguinte.

Levantar as mãos contra os detentores dos fortes poderes coloniais, esclarecer a condição de interdependência com a natureza, focar-se em ideias para além dos conhecimentos tradicionais, é o que acontece na performance de Vivian Caccuri, The Fever Hand. A artista brasileira relata as peculiaridades da cor amarela em relação às doenças, à história da arte, à biologia e à política: partindo dos insetos atraídos pelas flores amarelas, tal como pelo açúcar nelas contido, passando pelos seios femininos e pelas representações da maternidade na cultura ocidental, a história do amarelo é uma história de dependências e de febre, da atração por uma droga doce que pode até influir drasticamente no futuro de todos: os fãs do presidente brasileiro Bolsonaro vestem-se de amarelo. Quem sabe não se torne muito perigoso ostentar e apoiar esse hábito, finaliza Vivian.

No Teatro Micaelense, com a exposição Poromechanics de Catarina Miranda, entramos num mundo onde o humano e o animal, entre corpos e movimentos, se misturam entre eles, relacionando-se com o ambiente: os espelhos, as luzes, os lustres do teatro transformam-se em fragmentos de uma narrativa hipnotizante na qual estamos misteriosamente envolvidos, enquanto o espetáculo de dança Cabraqimera é um encontro para além da gravidade, realizado por quatro bailarinos: um desafio total, mesmo à tradição da performance contemporânea, à semelhança do que  acontece em Visions, de Nástio Mosquito. Através de sons, palavras, e com a intervenção de vendedoras na plateia do Auditório Luís de Camões, o artista faz explodir a ideia tradicional de mise en scène.

Um pouco mais além há Cagarros Assembly, lindíssimo passeio que aglutina narrative art e natureza, na localidade Rocha da Relva, lugar mágico onde a artista Ellie Ga leva o público, numa listening session, a ouvir os sons dos cagarros, as aves marinhas noturnas mais misteriosas e fascinantes da região da Macaronésia – composta pelos arquipélagos dos Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde. Estamos imergidos nas trevas, à beira dum precipício oceânico: a Assembleia dos Cagarros é mais um exemplo da liquidez poética que alimenta o Walk&Talk, em que a arte se liga ao ecossistema circundante como uma forma eficazmente sustentável de cultivar cultura.

Afinal o Festival é, por sua vez, um pélago de possibilidades para sondar o que é necessário para criar novas formas de imaginar a arte e a comunidade.

Os Açores, pela sua configuração, é o lugar certo onde tudo isso pode ser desenvolvido de uma forma imbuída de curiosidade e autenticidade, deixando de lado estruturas rígidas: todos podem entrar, nadar, sair, aproveitar, aguçar a curiosidade ou então, não menos possível, evitar simplesmente o contacto com este mar de práticas. Pois sabemos que a água – conforme a sua temperatura – pode não agradar a todos.

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte. Atualmente é Diretor Responsável da revista italiana exibart.com e colaborador para o semanário D La Repubblica. Além de jornalista, fez a edição e a curadoria de vários livros, entre os quais Un Musée après, do fotógrafo Luca Gilli, Vanilla Edizioni, 2018; Francesca Alinovi (com Veronica Santi), pela editora Postmedia books, 2019; Prisa Mata. Diario Marocchino, editado por Sartoria Editoriale, 2020. O último livro publicado foi L'involuzione del pensiero libero, 2021, também por Postmedia books. Foi curador das exposições Marcella Vanzo. To wake up the living, to wake up the dead, na Fundação Berengo, Veneza, 2019; Luca Gilli, Di-stanze, Museo Diocesano, Milão, 2018; Aldo Runfola, Galeria Michela Rizzo, Veneza, 2018, e co-curador da primeira edição de BienNoLo, a bienal das periferias, 2019, em Milão. Professor convidado em várias Academias das Belas Artes e cursos especializados. Vive e trabalha em Milão, Itália.

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