Berlin Biennale 12, esboço de reparação
A 12ª Bienal de Berlim (BB12) teve início no dia 11 de junho e decorrerá até ao dia 18 de setembro em seis recintos diferentes: Akademie der Künste (duas localizações), Hamburger Bahnhof, Stasi-Zentrale. Campus für Demokratie, KW, e Dekoloniale Erinnerungskultur in der Stadt. A edição deste ano, que teve a curadoria de Kader Attia com a assistência de Ana Teixeira Pinto, Đỗ Tường Linh, Marie Helene Pereira, Noam Segal e Rasha Salti, propõe-se abordar a noção de trauma coletivo a partir de diferentes perspetivas, sempre sob o pressuposto de que a cura de qualquer ferida passa em primeiro lugar pelo ato de a assumir e de a tornar visível.
No caso da BB12, esse ato procura acima de tudo ser um ato de reparação. Desde logo, porque a ferida que se aponta às marcas de um passado colonial, esclavagista, autoritário – não diz respeito apenas a uma dor, mas também a um panorama de disfuncionalidade estrutural na forma de divisão, desigualdade e violência. Para Attia, o trabalho artístico contempla, por culpa do seu caráter não-prático, a possibilidade de desaceleração e rutura necessária ao diálogo, à discussão. E é precisamente por causa dessa possibilidade que permite também um acesso privilegiado, íntimo, à ferida. Que nos aproxima dela, em jeito de fórum.
Não é, portanto, de estranhar que a maioria dos trabalhos apresentados pareçam ter sido escolhidos com o intuito de não afastarem o público da sua base de investigação. Em linhas gerais, há uma evidente insistência na ideia de arquivo, tal como na sua prática, com todas as problemáticas que lhe são inerentes, desde o olhar invasor subjacente às imagens dos arquivos coloniais às condições materiais que os mantêm. Essa insistência é evidente desde logo pelo facto de, ao longo dos vários espaços expositivos, estarem espalhados uma série de documentos do Archiv der Avantgarden – Egidio Marzona que, não sendo propriamente trabalho artístico, funcionam não só como leitmotiv mas também como forma de contextualização.
Além disso, há uma série de trabalhos, como Complexifying Restitution, de Jihan El-Tahri, Air Conditioning, de Lawrence Abu Hamdan ou Reading Wood (Backwards), de Uriel Orlow, que partem do levantamento de uma série de documentos históricos sem grande afastamento ou abstracção. Nesse registo, Poison Soluble: Scènes de L’occupation Américaine à Bagdad, de Jean-Jacques Lebel, é talvez o melhor exemplo da prevalência dos factos em detrimento da abstração. Exposto numa sala que tem à porta um trigger warning, o trabalho consiste numa série de fotografias de arquivo público de várias prisões no Iraque aquando da invasão norte-americana, nas quais se veem corpos de prisioneiros iraquianos torturados, desmembrados e empilhados enquanto soldados americanos se riem pousando orgulhosamente ao seu lado.
Pese embora a violência subjacente às vozes em questão, às suas histórias, é possível, contudo encontrar uma certa delicadeza no convite a entrar e a ouvir. Esse é talvez um dos elementos chave da BB12: independentemente da proximidade dos factos, pode falar-se numa espécie de protagonismo literário, tendo em conta a ênfase e importância dadas ao processo de ouvir, de assimilar e repensar, de ver, ler e perceber. Há, pode dizer-se, uma certa predominância hermenêutica. O espaço aparenta ter sido desenhado para isso mesmo, com a grande maioria dos trabalhos expostos em salas isoladas, pedindo que quem por ali passa se demore. No fundo, num registo de imersão que é acima de tudo discursivo.
Literariamente, também, há casos em que o modo de contar transforma a própria história de forma assinalável, como por exemplo em this undreamt of sail is watered by the white wind of the abyss, instalação de Thuy-Han Nguyen Chi que junta no mesmo palco um barco, uma maca e um vídeo em que se ouve um relato de sobrevivência a um naufrágio. Na primeira pessoa, a narradora descreve como acabou sozinha no oceano a fugir de piratas tailandeses, sem nunca explicar como sobreviveu. Path to the Stars, filme de Mónica de Miranda em que a artista é também atriz e lê um poema de Agostinho Neto com o mesmo título, ocupa um espaço semelhante, no limiar entre um retrato de ferida e um imaginário quase celestial sem nunca sair do mesmo lugar: o rio Kwanza.
Arquivo ou relato, passado ou no futuro, a atmosfera geral parece de um modo geral traduzir o objetivo de tornar visível, um dos grandes objetivos de Attia que a BB12 encarnou. Esse princípio parece ter dois momentos no que à forma como os trabalhos estão apresentados diz respeito, como se tivessem duas funções: primeiro, ocupar o espaço; segundo, comunicar, apresentar uma voz. A ideia é clara, passando por ativar uma certa curiosidade que permita aos visitantes investigar posteriormente e, idealmente, levar a que essa investigação transforme o visitante assim tornado interlocutor. Com efeito, tornar visível contempla a possibilidade de expandir uma preocupação. Por outro lado, a presença permite uma forma de relação que pode ultrapassar o espaço expositivo.
Cumprir um programa deste género não é, ainda assim, tarefa simples. Construir espaços de dor, torná-los visíveis, implica também a responsabilidade de pensar o modo com que se é visto. Mas não será ver demasiado, se falamos de uma ferida? Por outras palavras, não estará a proposta de transformação potencialmente vedada pela dor e, assim, aberta apenas a quem parte já com a pré-disposição de se transformar, ou seja, com uma curiosidade que preceda esse encontro? Além disso, porque o ponto fundamental parece ser o diálogo, poderíamos também questionar se há conversas mais relevantes do que outras. Haverá dores mais relevantes? Como definir um critério curatorial a partir de uma visão artística em que o discurso é prioritário?
Estas questões são importantes por uma série de razões. Primeiro, porque o trabalho artístico desempenha aqui uma função transformadora. Nesse sentido, é importante perceber não só quão efetivo é esse trabalho nessa função, mas também a quem chega. Depois, porque é fundamental garantir que o palco dessa proposta transformadora – o museu, a cidade, o país, o ocidente – não reforça a sua hegemonia pelo simples facto de dar espaço às suas feridas. Afinal de contas, a descolonização do museu é também um dos objetivos fundamentais da BB12. A partir do momento em que o discurso ocupa um lugar central, a curadoria passa a ter um papel prático para além da mera exposição. E isso requer um cuidado redobrado porque, em algumas situações, a mera intenção de tornar visível pode tornar-se contraproducente.
Um exemplo claro de um desses casos é a forma como é apresentado exile is a hard job, trabalho de Nil Yalter exposto no KW que junta na mesma sala vários vídeos e fotografias de emigrantes portugueses e turcos a descrever as dificuldades de adaptação a França nos anos 70. Nas gravações, os emigrantes portugueses fazem um retrato da sua condição marginal, explicando a relação entre o racismo que sentem da parte dos franceses e as bidonvilles nas quais eram forçados a viver. Na parede perpendicular, as fotografias pendem em silêncio. Depreende-se que o que as liga é a proximidade das experiências, como se ser turco ou português fosse apenas uma forma.
Ao mesmo tempo, na Akademie der Künste de Pariser Platz há várias referências, nomeadamente no trabalho de Moses März, à Operação Mar Verde, um ataque militar secreto do exército português a Conacri em 1970. Os objetivos da operação militar passavam, entre outros, por provocar um golpe de estado na Guiné-Conacri, capturar Ahmed Sékou Touré, presidente do país, e perturbar o sistema logístico do PAIGC. A operação causou 500 mortes guineenses e teve contornos particulares, com os militares portugueses brancos a atacarem a capital guineense com as caras pintadas de negro e perucas. O ataque não foi reconhecido pelo Estado Português até à data.
O conflito entre estes dois trabalhos é ilustrativo da forma como a promessa de tornar visível está dependente da curiosidade prévia dos visitantes, mas também da confusão que a sua ausência pode provocar. Em ambos os casos, o lugar de compaixão parece ser óbvio: é evidente que os imigrantes portugueses em França estão numa posição de vítima, sendo também evidente que, na Operação Mar Verde, estão numa posição de agressor. Por outro lado, a cronologia dessas posições antagónicas – os anos 70 – é a mesma. Tal facto, contudo, não é apontado em lado algum, ficando ao critério do visitante descobri-lo.
O que explica que, na mesma década, multidões fugissem de um país para viver em bairros de lata ao mesmo tempo que um país dizimava cidades noutro continente? Neste caso, talvez a melhor solução fosse pôr estes pontos em conflito, agregando-os no mesmo espaço de modo a problematizar o seu contexto, encorajando assim a discussão. Na sala seguinte, porém, encontramos o trabalho fotográfico de Mathieu Pernot acerca dos Gorgans, um grupo de etnia cigana residente em França. A questão anterior perde-se a caminho.
Há, para além de tudo isto, ainda várias questões práticas, nomeadamente as que se levantam com a temática da devolução de obras de arte por parte de países ocidentais aos países às quais foram roubadas no período colonial, recorrente na BB12. De que serve expor trabalhos como Self-Portrait as Restitution – from a Feminist Point of View, de Deneth Piumakshi Veda Arachchige, que, através de uma escultura réplica do seu próprio corpo, ilustra o lugar de mercadoria a que foram votadas mulheres como ela no passado, se museus como o Neues Museum – em parte financiados pelos mesmos mecenas da BB12 – continuam a faturar milhões por terem como atração obras de arte roubadas, como a de Nefertiti? Quão efetivo é, no final de contas, o discurso como prática?
Também aqui uma questão relevante, com a qual a BB12 terá de se deparar: a importância assegurar que os beneficiados do processo de tornar visível não serão os mesmos que beneficiaram com a invisibilidade que esse processo se propõe a reparar. Como sublinha Samira Ghoualmia num dos textos de introdução à BB12, “as práticas de mediação artística não estão a salvo de posturas ocidentais hegemónicas que procuram “objectos de caridade”, demarcando corpos marginalizados como outro a fim de os educar para que se insiram numa instituição. Estas “ilusões de cuidado” procuram controlar o outro, ao mesmo tempo que põem a sua alteridade exotizada em exposição em nome da diversidade”. É preciso não esquecer também esse cuidado.
Dito isto, é preciso sublinhar que alguns dos objetivos da BB12 a põem também numa posição ingrata. Talvez isso seja, aliás, inevitável. É natural que um ato – ou tentativa – de reparação envolto num contexto global de violência esteja envolto em contradições, acabando por trazer mais questões do que respostas. Ainda assim, esse é provavelmente o primeiro passo para as ultrapassar. E a verdade é que, no meio de todas essas contradições e conflitos, a BB12 consegue, na maior parte do tempo, tornar o discurso uma forma de imersão, fazer os visitantes ouvir as histórias com as quais se vão cruzando, esboçar uma ideia de fórum. Num panorama de agressão, cegueira e distância, isso torna-se um ato de muito maior dimensão.