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Vestir Memórias

Embora a descolonização dos países africanos de língua portuguesa se tenha iniciado no período revolucionário, está longe de se ter concretizado de forma plena, nos domínios não só políticos, mas também económicos e culturais. Ao longo destes anos todos deu lugar, antes, à criação permanente de neocolonialismos, e foi chão de investidas por parte de mercados exteriores aos seus próprios interesses, dificultando o seu caminho enquanto nações autónomas, capazes de criar, conforme o programa político dos 3Ds, a sua própria democracia, o seu próprio desenvolvimento económico. Estes raciocínios, de forma reduzida, pertencem a Ana Balona de Oliveira que, no seu ensaio “Descolonizando a Lusofonia através das Artes Visuais dos Países Africanos de Língua Portuguesa e da sua Diáspora” foi traçando, com acuidade, as condições de vulnerabilidade com que os países de expressão portuguesa se vão debatendo e enfrentando, até conseguirem um lugar de pleno direito, quer económico, quer intelectual.

Pouco a pouco, e ultimamente, com mais acento, temos observado um crescimento do investimento por parte das galerias de arte portuguesas em promover o trabalho dos artistas oriundos destes países, muito embora, e ainda segundo Oliveira, tenham primeiro tido que passar por algum reconhecimento internacional para, efetivamente, encontrarem posteriormente acolhimento em Portugal.

Foi também, através de Ana Balona de Oliveira, que cheguei a um texto de Boaventura de Sousa Santos, e que, para melhor entender a exposição, Vestir Memórias, de Ana Silva, me vejo agora a tentar esmiuçar, com mais detalhe, e dedicar algum do meu tempo.

Prenderam-me sobretudo, no texto “Epistemologias do Sul”, de Boaventura Sousa Santos, escrito em parceria com Maria Paula Meneses, as considerações tecidas em torno dos problemas epistemológicos, e até ontológicos, levantados pelo mundo ocidental moderno ao exercer sobre os países africanos, um domínio, muitas vezes, colonialista e capitalista. Ora se as epistemologias se concebem no seio do contexto e das relações sociais, e se o modelo ocidental se impôs politicamente e militarmente sobre os povos não ocidentais, incutindo princípios universais sobre as suas práticas sociais, podemos concluir que os povos africanos possuíam originariamente formas de conhecimento locais diversificadas, e que, pouco a pouco, foram sendo eliminadas por conceções niveladoras e unilateralistas, provenientes de fontes de pensamento ocidentais, pretensamente encaradas como sendo superiores, ou até válidas, enquanto pensamento único. Segundo Santos e Meneses, a dupla intervenção ocidental, política e capitalista por um lado, e moderna e cristã por outro: “foi de tal maneira profunda que descredibilizou e, sempre que necessário, suprimiu todas as práticas sociais de conhecimento que contrariassem os interesses que ela servia”. Conduzindo, segundo os autores, a um verdadeiro “epistemicídeo”, na medida em que, pela forma como a intervenção ocidental dirigiu a sua atuação “desperdiçou-se muita experiência social e reduziu-se a diversidade epistemológica, cultural e política do mundo”.

A crença na ciência e no domínio epistemológico ocidental conduziu, também, os agentes da cultura autóctone, e saberes locais, a uma condição de mudez, subordinação e impotência, a que os artistas africanos, infelizmente, não foram alheios.

A exposição de Ana Silva parece ilustrar essa insatisfação. Um número, incontável, de peças de vestuário, ligadas entre si, pedem descodificação.

A primeira pergunta que desponta é: De onde vêm todas estas peças de roupa? E os vestidos, cobertos de padrões coloridos?

Causam estranheza porque inicialmente não conseguimos discernir as origens, ou sequer perceber a que país pertencem.

Numa antessala, ou pequeno corredor inicial da galeria, vários panejamentos cobrem uma das paredes. Fios dependurados tombam no ar, em linha reta, e em direção ao solo. Nascem da linearidade das costuras do bordado, vencidas pela gravidade. Os panejamentos, ou vestes descarnadas, unem-se por meio de costuras.

No meio de rendas prazerosas, bordados com rostos de mulheres anciãs, irrompem, como sombras, ou leves aparições. Outras perguntas assolam à mente: Uma condição feminina que não pode silenciar-se? Memórias de mulheres do outrora, ou antes mulheres de hoje? Serão memórias caladas, ou antes a mudez das suas histórias que não podem ser mais escondidas?

Os fios, em linha reta, que se precipitam para o solo, (como fios de sangue?) partem dessas imagens de mulheres maduras, e contrastam, ou acentuam, a irradiação, ou irregularidade, dos fragmentos de tecidos que se encontram unidos entre si.

Eles não convencem mais do que a incongruidade. Fazem-nos suspeitar daquela união, aparentemente tão díspar. De onde provêm todos esses tecidos? Esses fragmentos de vestes descarnadas? As roupas já não servem para vestir, porém foram transformadas em telas bidimensionais para vestir pensamentos.

Como se fossem colagens Dada, revelam a incongruência das suas ligações. Mostram, de modo claro, como a cultura autóctone é suturada, e dilacerada pela intromissão de fragmentos ocidentais. Mesmo que os povos não os reconheçam, não compreendam os seus códigos, eles invadem as suas sociedades, os seus povos indígenas. Assim, centenas de roupas chegam ao continente africano, e, como numa violência simbólica, o povo natural vai sendo culturalmente colonizado e vituperado. Obrigado a criar novos sentidos e histórias a esses pedaços.

Na sala ampla, depois da pequena antecâmara, somos arrebatados por uma assombrosa composição de objetos dispostos a um canto da sala.

Um manequim, sem cabeça, encontra-se sentado numa cadeira baixa e ostenta colares infinitos, a adornar o esguio pescoço.

O que se declara é um festim de cor, uma alegoria das formas, um regalo para a vista, com tanto requinte nos padrões e voluptuosidade nos detalhes. Não se encobre a feminilidade, pelo contrário, celebra-se.

Num vai e vem de sentidos, ou da ausência deles, leva-nos a interrogar, porque se aliam daquele modo?

Interrogamo-nos, de onde provêm os fragmentos de pano?, e em que medida o conhecimento ocidental teve o direito de “mutilar” a sociedade, a memória, e a cultura indígena, com a sua pretensão de superioridade?

É neste preciso momento, em que precisamente me interrogo sobre a questão da superioridade, que me desponta o pensamento em Kant, na Fundamentação Metafísica dos Costumes, e de uma frase que poderá sustentar este meu pensamento: “Discernimento, argúcia de espírito, capacidade de julgar e como quer que possam chamar-se os demais talentos do espírito, ou ainda coragem, decisão, constância de propósito, como qualidades do temperamento, são sem dúvida a muitos respeitos coisas boas e desejáveis, mas também podem tornar-se extremamente más e prejudiciais se a vontade, que haja de fazer uso destes dons naturais e cuja constituição particular por isso se chama carácter, não for boa”. Ou ainda, “O mesmo acontece com os dons da fortuna. Poder, riqueza, honra, mesmo saúde, e todo o bem-estar e contentamento com a sua sorte, sob // o nome de felicidade, dão ânimo que muitas vezes por isso mesmo desanda em soberba, se não existir também a boa vontade que corrija a sua influência sobre a alma e juntamente todo o princípio de agir e lhe dê utilidade geral”.

A exposição de Ana Silva, Vestir Memórias, está patente na Galeria do Pátio na Casa da Cerca –  Centro de Arte Contemporânea, em Almada, até ao dia 11 de setembro.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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