Top

Pacto

Não é preciso desviarmos muito da esfera da arte para observarmos que a ação no feminino ainda hoje é debilmente reconhecida, e representada.

Num artigo publicado na Tate “Are women represented fairly in the Arts?”, e de acordo com um estudo realizado pelo “Museum of Women in Arts”, 50% dos artistas visuais são hoje mulheres, porém, quando se refere a galerias e exposições, a percentagem da sua participação e representação não se verifica de forma alguma de modo igualitário, ficando muito aquém dos cinquenta por cento. Segundo o estudo, e no caso londrino, apenas 5% das galerias parecem apresentar equidade a respeito de representatividade, quanto a mulheres e homens.

Não sei prever o ano em que foi escrito o artigo, mas a avaliar pelos dados, que remontam ao ano de 2017, presume-se que não terá sido há muito tempo, e se formos realistas, pouco deve ter mudado desde esse momento. Tal constatação não deixa, infelizmente, sombra para dúvidas, ainda há muito por fazer.

Com a pandemia, a infelicidade das guerras, e agora ainda mais o inesperado tema sobre o aborto e a sua recente restrição, são tudo acontecimentos que não ajudarão a esse trabalho intenso e debate aberto, e muitas vezes anónimo, que tem sido feito, em prole da luta pelo reconhecimento da mulher, no domínio artístico, cultural, social entre outras dimensões.

No campo das artes, as Guerrilla Girls têm sido, desde sempre, uma força ativa no combate ao racismo e sexismo, ao trazer à discussão, por detrás de máscaras, e desde 1985, as desigualdades raciais e de género. Desconstruindo assim a imagem conveniente à sociedade, de mulheres condicionadas à vida doméstica. Jo Spence foi também uma dessas artistas, que explorou a ideia da mulher objeto. As artistas manipulavam assim, muitas vezes, a sua própria imagem, o seu corpo, ou tomavam atitudes provocatórias face aos estereótipos, ao esperado ou vigente em sociedade.

As décadas de 60, 70 e 80 do século XX, foram pródigas na tomada de consciência desta questão do feminino. Sobretudo porque se reproduziram em reações de grupos e não somente em casos isolados. E sabemos bem como esses casos isolados terminaram: em vidas desperdiçadas, sofrimento profundo, e afastamento da sociedade. Espelhados na vida e obra de Camille Claudel, por exemplo, ou, em tempos mais remotos, no pouco reconhecimento que foi dado, durante séculos, à obra de Artemisia Gentileschi.

Na exposição Pacto, presente na Galeria Municipal de Almada, e com curadoria de Filipa Oliveira, podemos, desse modo, observar este desconstruir das correntes e das amarras a que a mulher se via, e ainda vê, votada. Ainda mais na condição de mulher artista, surgem traços de busca sobre si mesma, como por exemplo na peça sonora de Luísa Cunha. De forma nostálgica, e até sonhadora, a artista chama pelo seu próprio nome, Luísa, em a artista chama por si própria (2015).

Um filme de Ana Hatherly, que consta dos arquivos do poeta visual Fernando Aguiar, é projetado sobre as paredes da galeria. Nele vemos a artista, pouco depois da revolução de 74, envolvida na performance Rotura, 1977, na galeria Quadrum, a fazer energicamente sulcos sobre papel, a rasgar telas brancas.

Susana Mendes Silva revela-nos Alameda, Avenida, Mariana, Maria, Maria, Maria uma instalação compreendida em duas partes. Uma parte apresenta-nos uma informação sobre os nomes das ruas em Almada. A outra parte é revelada por duas placas toponímicas que se encontram afixadas sobre as paredes da galeria, e onde constam os nomes de mulheres, como Mariana Alcoforado e as 3 Marias. Em gesto de compensação, numa tentativa de emendar a própria história, e reposicionar, de forma justa, as mulheres e os seus feitos, de modo a serem vistas com o devido reconhecimento pela sociedade e pela memória.

São poucas as ruas com nomes de mulheres, e as que existem são muitas vezes ruas secundárias ou vielas recônditas sem saída, quase impercetíveis. De inferior importância, toponimicamente falando.

Há também um desenho de Maria José Aguiar, onde, em contornos populares e nacionais, e com acento habitualmente autobiográfico, trata o corpo, o sexo e as questões de género.

Leonor Parda, acostumou-nos às suas máquinas híbridas, e na exposição Pacto não poderia ser diferente. A artista apresenta um conjunto de máquinas resultantes da reciclagem de outras obras suas a que já nos habituou em outros projetos. Apresenta-nos agora um conjunto de peças que nos convocam a uma mescla de interpretações. Alguns objetos lembram uma parideira, para outros, um instrumento de tortura? A verdade fica ali a pairar, num misto entre o prazer e a dor.

Sobre Rogério Nuno Costa temos as correspondências por email em que o discurso do artista é um permanente pedido de desculpas aos seus destinatários. Sem esforço põe a nu matéria tão sensível como o é o tema autobiográfico, e a fragilidade que lhe é própria. Reporta-nos talvez para o tocante curriculum vitae escrito por Salette Tavares, em 1985, e que mais tarde aparece editado no livro Poemografias: Perspectivas da Poesia Visual Portuguesa, Edições Ulmeiro.

Temos outras importantíssimas colaborações como os artistas Dorita Castel-Branco, Gisela Casimiro, Miguel Bonneville, Carla Filipe, Mafalda Santos, Carla Cruz, Joana Baptista Costa, Mariana Leão e Mané Pacheco.

A exposição está patente até 9 de setembro, na Galeria Municipal de Almada.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)