Entrevista com Bruno José Silva: Limit of Disappearance
Miguel Pinto entrevista Bruno José Silva, a propósito de Limit of Disappearance a sua mais recente exposição na Galeria Municipal de Torres Vedras, que irá, depois, partir para a Casa Varela – Centro de Experimentação Artística em Pombal. Falou-se de robótica e contemplação.
Miguel Pinto – Limit of Disappearance é o título da tua mais recente exposição, inaugurada na Galeria Municipal de Torres Vedras. Podes levar-me pelo conceito da mostra, e pelos trabalhos que aqui apresentas?
Bruno José Silva – Limit of Disappearance surge como um cruzamento entre artes visuais, robótica e processos computacionais, nascendo de uma vontade de problematização da criação e do consumo excessivo de imagens na atualidade. Esta reflexão crítica dá-se ainda dentro de um pensamento mais amplo sobre a crise e a massificação das imagens com o surgimento da tecnologia, pelo modo como esta contamina, condiciona e (de)forma o indivíduo.
A tecnologia nela patente foi desenhada para colocar o elemento humano no centro e a sua ação ter reflexo na obra, como também criar mecanismos ou ferramentas que impossibilitem ou dificultem a visualização das imagens presentes nas peças. Neste sentido, propõem-se processos de fruição que necessitam de tempo. Por exemplo, i’ve seen this face before é uma instalação constituída por uma câmara Raspberry (que capta imagem em tempo real do espaço expositivo) e um pequeno ecrã (que contém uma imagem de um micro-organismo). O seu movimento é processado em tempo real, através de um software computacional que age sobre a imagem do ecrã, impossibilitando a sua visualização. Para conseguir ver a imagem na sua plenitude é necessário aprender a não reagir de imediato ao impulso, aprender a parar. É necessário (re)educar o olho para uma atenção profunda e contemplativa. Neste sentido, é também uma exposição sobre ação, que exige ao visitante uma consciência sobre o impacto da sua decisão ou intervenção. Por exemplo, to be defined é uma instalação constituída por uma imagem impressa em tecido, colocado sobre um mecanismo de roldanas, ativado pela presença do visitante, cujo intuito é a deterioração dessa imagem. A entrada no espaço expositivo só é possível depois de assinar uma declaração onde aceita que esta sua visita provoque uma alteração irreversível sobre a imagem. Os visitantes seguintes irão observar a imagem na ótica dos que a transformaram anteriormente. A ideia será poder metamorfosear a imagem até ao limite do seu desaparecimento. Cada espectador é responsável não só pela sua escolha, mas por aquilo que os próximos visualizarão. Uma relação mais dificultada é proposta por outra instalação (sem título), designadamente uma fotografia sob um mecanismo opaco que se torna transparente apenas em dias e horas específicas. Para o visitante conseguir ver a imagem terá de voltar à galeria nos dias e horas indicados. Exige, por isso, um compromisso com a vontade de a ver em pleno.
MP – I’ve seen this face before parece-me jogar com um conjunto de ideias que quase se contrapõem. Por um lado, a conceptualização tecnológica da máquina, e a imagem que altera autonomamente com o movimento do visitante, mas através da qual somos conduzidos a um estado de contemplação, incapazes de corresponder a estímulos e impulsos como estaríamos habituados num dispositivo digital. Estará aqui uma necessidade de recuperar uma perceção perdida, um sentido de procura e descoberta que estará a esmorecer com a excessiva acessibilidade das imagens no mundo digital?
BJS – De facto, esta peça é bastante impositiva no que diz respeito à relação dos espectadores/visitantes com a imagem. A exigência de imobilidade e demora frente ao dispositivo, força uma relação de dificuldade que me interessa. Importa-me essa paragem, pensar dispositivos que criem tempos de desconexão com o mundo e de conexão com pequenas ideias e detalhes, para que cada visitante possa relacionar-se com esta pausa. Esta peça versa, de facto, sobre a excessiva acessibilidade das imagens no mundo, não apenas do mundo digital.
MP – Algo que me parece recorrente nas tuas obras é um sentido de desfoque, a disposição de objetos ou imagens a que não conseguimos aceder completamente. Por exemplo, no caso desta exposição onde apresentas uma composição que se autodestrói com a intervenção do visitante e uma imagem cuja revelação implica um processo difícil e demorado, mas também já na passada Dream Sequence no Marvila Art District, onde apresentaste We Are Going Down, uma assemblagem de manchas e transparências cuja apreensão, pelos seus encobrimentos, parece quase impossível. O que é que te atrai nestas relações, quase como uma sabotagem ao espectador?
BJS – Numa época de completa facilidade de consumo de imagens, interessam-me propostas que o questionem. Assim, procuro dispositivos que imponham dificuldade, para que apenas se possa usufruir destas imagens com esforço e uma verdadeira vontade. O espectador tem de querer ver a imagem. Processo de parar para observar, apreender. Mais uma vez retorno ao assunto do tempo – interessa-me propor dispositivos que forcem uma relação de tempo de paragem para contemplar.
MP – É também notório, olhando para os teus trabalhos, o modo como escolhes operar em diferentes media. Podes falar-me um pouco do teu processo criativo, e do consequente surgimento destas vontades artísticas?
BJS – O meu processo artístico é sobretudo um processo de acumulação. Em primeiro lugar, pela sua natureza investigativa, coleciono, até à exaustão, bibliografia sobre as temáticas em causa, imagens de trabalhos de outros artistas e que se relacionam com o meu, numa pesquisa que acontece de forma muito orgânica. É importante que possa compreender e aprofundar o conhecimento sobre os temas centrais dos projetos, de forma a encontrar pontos de vista. Esta pesquisa é a fase mais longa, e atravessa todo o projeto de tal forma que, a certa altura, tenho de me forçar a pará-la para que possa prosseguir.
Depois, como cada projeto é uma derivação dos anteriores, as novas referências e leituras acumulam-se e vão dialogando. É fundamental referir que o meu processo é bastante colaborativo. Esta colaboração dá-se desde o primeiro minuto, mas é, especialmente, no trabalho de mesa para a materialização das ideias que este acontece. Toda a equipa é co-criadora do projeto e todos os problemas que são colocados em mesa são trabalhados em conjunto. Desde o olhar pragmático da Mariana Sá Marques, produtora do projeto ao investigador Carlos Cardoso que é, não apenas responsável na criação dos mecanismos de robótica e software, mas também fundamental no pensamento sobre as propostas instalativas. Parte do meu processo assenta no diálogo e na discussão das ideias.
MP – Limit of Disappearance esteve também a decorrer até ao final de maio na Project Room do Banco das Artes em Leiria. Que desafios e implicações se descobrem nesta apresentação das mesmas obras em lugares distintos?
BJS – A circulação da exposição permite uma relação de apuramento e extensão do pensamento. Em primeiro lugar, a relação de site-specific própria do trabalho de adaptação aos diferentes espaços (Banco das Artes, em Leiria; Paços – Galeria Municipal de Torres Vedras e Casa Varela – Centro de Experimentação Artística, em Pombal), permite o confronto da imagem instalativa com a própria arquitetura, relação espacial que possibilita propor diferentes dinâmicas cénicas aos visitantes – talvez este meu interesse advenha de uma extensão dos trabalhos em artes performativas, onde desenvolvo cenografia.
Depois, uma exposição que se prolonga no tempo permite criar em cada lugar novas peças ou adaptações das já existentes, num processo de pesquisa e experimentação. Uma das faces mais visíveis da transformação da exposição é o processo de acumulação. Em cada lugar onde se expõe, o vestígio que é gerado da peça to be defined é transportado para o espaço seguinte, criando um outro objeto. A imagem presente no tecido deixa de existir no todo e surge uma pintura criada com texturas, imperfeições e linhas que a tinta preta faz sobre o mecanismo. No meio deste processo, desenha-se uma nova peça, sob a qual não tenho controlo. É uma máquina que é desenhada para a concretizar. O propósito só se concretiza com a quantidade de visitantes sobre ela. A exposição aumenta a cada novo lugar.
Além disso, a circulação deste projeto permite-me estar consciente dos trabalhos que os diferentes municípios, através das suas câmaras e associações locais, estão a desenvolver no campo das artes visuais em Portugal. Tenho tido experiências muito interessantes, desde sentir uma enorme dedicação por parte das equipas de cada espaço, a discussões com o público sobre as problemáticas da exposição.
MP – Esta exposição terá, oportunamente, surgido numa altura em que se começou a popularizar online o primeiro gerador de imagens a partir de texto em acesso livre, o Dall-E mini. À luz de Limit of Disapperance, e do jogo com estas imagens extra-humanas, como é que percecionas esta relação artística homem-máquina, e o que é que achas que ela pode vir (ou não) a implicar futuramente?
BJS – Essas duas questões têm sido muito importantes nos meus últimos trabalhos. Sinceramente, não sei se cheguei a grandes conclusões ou se posso já responder a isto. É talvez o problema de lidar com o agora ou com questões fraturantes da atualidade. Não a tenho e é essa uma das razões pelas quais estou tão obcecado no desenvolvimento de propostas artísticas nesse âmbito.