Top

João Maria Gusmão e Pedro Paiva através das obras 3 Suns, Falling Trees e Papagaio (djambi)

É belo (…) como o encontro fortuito numa mesa de dissecção entre uma máquina de costura e um guarda-chuva!

Conde de Lautréamont

Com Lautréamont se iniciou a minha investigação acerca da instalação para a malha institucional e as suas possibilidades quando a referência incide sobre instalação, montagem e curadoria, que se converteu numa dissertação sobre João Maria Gusmão e Pedro Paiva.

Foram analisadas as obras 3 SunsFalling Trees Papagaio (djambi) apresentadas em PapagaioLua Cão, com Alexandre Estrela, e Terçolho, ilustrando um estudo sobre as oito mostras. Na análise das obras e exposições, através do estudo do método curatorial, procurou-se uma relação estética do contexto com o método artístico até à reconceptualização do espaço e das peças, em que a mutabilidade na obra através da sua interação com as restantes peças e outros fatores leva a considerar se de facto se trata da mesma peça ou de uma nova e diferente peça onde a reconstrução e adaptação desenham uma base de significado que negoceia e regula o espaço em função da experiência estética.

Gusmão e Paiva desenvolvem os seus projetos artísticos no campo da fotografia e do filme de 16mm, baseando-se numa crítica satírica ao positivismo científico. As suas projeções exploram a linguagem do filme através da história do cinema, do vídeo e da câmara de filmar, que é ilustrada através de sistemas de projetores, lentes e mecanismos em sincronia, onde as imagens formadas por diferentes camadas representam sobre a obra e o projetor a linguagem criada através de episódios que ganham contornos fantasiosos e improváveis.

A sua obra aborda aspetos como a Abissologia de Daumal,1 a mise en abyme – do francês “colocar em abismo” -, a Sociedade Internacional da Abissologia criada pelos artistas, e a “Patafísica” de Alfred Jarry, que ilustra a “ciência das soluções imagináveis”.2 Para o duo, a utilização de processos obsoletos de reprodução contribui para alicerçar um discurso estético assente em referências filosóficas como Nietzsche, Daumal e Newton através de uma literatura fantástica e de ficção científica.

mise en abyme demonstra-se aqui como um signo, onde significado, identificação e descodificação revelam que cada signo corresponde a uma peça e não apenas ou, sobretudo, à referência que este cria, revelando que a interpretação da obra é intensificada pela alusão criada pela mise en abyme, ou seja, esta encontra-se sempre dependente das interações criadas na e para a exposição, mas também entre obras. Tal noção é corroborada pela teoria de Dällenbach que mune tanto espectador como artistas através da relação que o signo admite como unidade narrativa,3 o que, evidencia uma continuidade do significado, do mesmo modo que outro signo que se encontre em jogo, contribuindo com um significante que absorve a história e se torna ele próprio o tema, cuja capacidade de se ilustrar a si próprio demonstra a capacidade do duo de transpor a exposição para lá dos seus mecanismos físicos e sensoriais.

3 Suns, compõem uma imagem estática sobre o movimento e, simultaneamente, uma análise da memória e do processo para a construção de uma mise en abyme, onde é sugerida a ideia de abismo e de exposições dentro das próprias exposições, culminando em novas e diferentes análises. 3 Suns esboça, pois, a vontade e dedicação do duo à Sociedade Internacional da Abissologia, que funciona como uma introdução, um espaço inalterável, o reflexo que se prefigura do espaço entre o real e o irreal. É nesta aparente imutabilidade que 3 Suns se reflete, variando na forma, local, meio e interação, mas conseguindo compor uma identidade contínua de si e do que oferece a cada exposição. Porém, é notória a mutabilidade da obra adquirida em Terçolho, onde, se antes ilustrava a noção das coisas imutáveis que são mutáveis, aqui esta transformação é relevante, não só por prefigurar uma diferença no modo de atuar do duo, mas também por construir uma introdução à exposição dentro da exposição, ilustrando o jogo de artista sobre a articulação da memória e da mise en abyme.

Falling Trees, que não fez parte da exposição Terçolho, demonstra para os artistas o regresso à origem, ao som que proporcionou o eco que é possível ouvir. Nesta, através do corte de uma árvore desenha- se uma imagem ilusória sobre a violência imposta pela ação e é nesta ilusão que o duo comunica através de uma imagem premeditada e consciente daquilo que presencia. A obra adquire uma análise muito distinta das exposições Papagaio para as sessões de Lua Cão, pois onde antes se perpetuava o seu sublime, aqui é interpelada por sons estranhos ao local, reportando a imagem através de uma triangulação dos sentidos pelas restantes obras que interpelam e adulteram a peça. Isto é, se durante as sessões de Papagaio a obra é percecionada num âmbito de construção e destruição aliada ao som contínuo do projetor, em Lua Cão incorpora outro meio, um meio de associação e “recombinação” de signos que, e através das obras de Estrela, revela o modo como a obra executa um regresso à origem das exposições, cujo tema reflete o carácter temporário, transitório e preparatório do que é a mostra.

Papagaio (djambi), com um carácter quase documental, aborda, através da gravação de um ritual, noções como ser e “não-ser”, ventriloquismo e as próprias noções de fé e crença. Simultaneamente, desenha uma comparação entre sociedades ocidentais e sociedades subsaarianas, colocando em evidência métodos medicinais do corpo e da mente. A obra ilustra uma leitura mental através das sessões de Papagaio, ao contrário do que acontece em Lua Cão, onde a ação ventríloqua do duo é mimetizada através das interações criadas com as obras de Estrela, cuja capacidade de penetrar o espaço visual e sonoro carrega grande influência na obra, remetendo o espectador para o que supostamente será o som do filme, criando a fantasia de que a imagem é real e pondo assim à prova a crença do espectador. O mesmo acontece em Terçolho que, através do local – a garagem -, remete o visitante para um espaço terreno e consciente das suas capacidades e limites.

Por fim, é relevante notar que, se nas exposições Papagaio a leitura da obra acontece ao nível mental, em Lua Cão esta noção é destruída, sendo impossível ler as obras sem a abstração sonora das primeiras exposições, onde estas se relêem a si próprias, não através do espaço, mas do som. Ao mesmo tempo, ao longo de Lua Cão, a interação de obras é alterada, havendo uma diferença substancial das primeiras exposições para as últimas, pois se na Walk&Talk o diálogo é realizado dentro das obras e para as obras, no Kunstverein e em La Casa Encendida o mesmo ocorre dentro do espetador, um processo mental que acontece por “recombinação”4 e memória. De modo idêntico em Terçolho, onde a perceção do projetor e da ação humana desenrolada no local remetem o espetador para uma realidade terrena, compondo um guia para o trajeto abismal construído através da exposição.

Gusmão e Paiva aproveitam a construção da narrativa em prol desta ação, ilustrando criativamente uma ação continuadora da exposição, uma exposição da exposição, que se reflete através da memória como uma mise en abyme. Esta é uma noção identitária da própria criatividade do duo através de um dicionário linguístico e pictórico que se constrói na mente.

 

 

1. Daumal, René, 2020, A Grande Bebedeira, trad. por Lurdes Júdice, Lisboa: Dois Dias edições.

2. Alfred Jarry, “Book Two: Elements of Pataphisics to Thadée Natanson: Definition”, in Jarry, Alfred 1996, Exploits & Opinions of Doctor Faustroll, Pataphysician: A Neo-Scientific Novel by Alfred Jarry, trad. Por Watson Taylor, Boston: Exact Change, pp. 21-23

3. Lucien Dällenbach, “Mise en Abyme and reflexivity: 1. Typology and Immediate Analysis Dällenbach”, “Basic Properties: The Reflected Narrative”, in Lucien, 1989 orig. 1971, The Mirror in the Text. Chicago: University of Chicago Press, pp. 41-43.

4. Roland Barthes, “The Death of the Author”, in Barthes, Roland, 1977 orig. 1968, Image-MusicText, trad. por Stephen Heath, London: Fontana, pp. 142-148.

José Pedro Ralha (Chaves, 1994) é licenciado em História da Arte com especialização em Filosofia da Arte, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre em Estudos Curatoriais, com a dissertação "A Instalação Artística através da obra de João Maria Gusmão e Pedro Paiva: Análise às obras 3 Suns, Falling Trees e Papagaio (djambi)", pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Colaborou em vários projetos como LAND.FILL, 2019, com Gabriela Albergaria para o Laboratório de Curadoria, Anozero '19 Bienal de Coimbra - A Terceira Margem, Terçolho, 2021, com João Maria Gusmão e Pedro Paiva, na Fundação de Serralves. Colaborou com a Fundação de Serralves e contribui com artigos e ensaios para a Umbigo Magazine. Atualmente trabalha no Museu e Bibliotecas do Porto como Produtor Executivo de Projetos Museológicos.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)