Ajax et Plures
Integrando o Programa de Exposições Itinerantes da Coleção de Serralves e enquadrada na adesão da Universidade Católica Portuguesa como membro fundador da Fundação de Serralves, a exposição Ajax et Plures concebida por Joana Valsassina – curadora do Programa Nacional de Itinerâncias na Fundação de Serralves – e Nuno Crespo – curador e diretor da Escola das Artes da Universidade Católica – revela-nos a multidisciplinariedade do corpo de trabalho de João Paulo Feliciano (1963) em exibição no campus da Universidade Católica no Porto. A mostra, que inclui uma obra inédita do artista, apresenta um conjunto de obras dos anos 1990 e 2000 pertencentes à Coleção de Serralves representativas de momentos distintos do percurso do artista, revelando continuidades e ruturas que marcaram a sua prática artística ao longo dos últimos trinta anos[1].
A singularidade da prática artística de João Paulo Feliciano, a apetência pela improvisação e manipulação e a experimentação de materiais e técnicas refletem-se num corpo de obras heterogéneo que anteciparam mudanças cruciais processadas a partir do início da década de 90 no modo fazer arte em Portugal. Ao caráter lúdico e irónico, caraterísticas transversais à obra de João Paulo Feliciano, acresce-se a exploração de meios variados nas obras em exibição – som, vídeo, luz, escultura – e de linguagens artísticas – das artes plásticas e gráficas, passando pelo universo da música e cultura rock, do design, arquitetura e multimédia- em trabalhos de dimensão performativa que desafiam o espectador. Se nos primeiros anos desenvolve trabalhos no domínio da pintura e do desenho a partir de 1988, período em que se encontra na Bélgica, assistimos à exploração de novos caminhos com recurso à construção inventada de objetos a partir de materiais não artísticos ligados ao quotidiano. De espírito autodidata e avesso a filiações disciplinares, João Paulo Feliciano afasta-se das práticas artísticas dominantes em Portugal assumindo um vocabulário minimalista de maior contenção formal e pendor conceptual como modo de comunicar cada obra. A propósito da utilização de objetos quotidianos e de materiais industriais e utilitários na criação de obras que questionam criticamente as convenções de arte destaquemos Back Home, 1990 em exibição no piso 0 do Edifício das Artes. Recorrendo à utilização de materiais de construção e reduzida ao mutismo da sua materialidade a instalação concebida em duas partes intriga-nos à medida que a observamos. Ao aproximarmo-nos da composição tridimensional acresce a aura de impermeabilidade do espectador em relação à mesma reforçada pela presença de quatro extintores metodicamente posicionados no chão, um em cada canto da estrutura metálica exterior que protege o volume central da obra, como que afirmando a delimitação do espaço ocupado pela mesma, ideia que o vinil autocolante no chão e que a envolve ajuda a reforçar. A atitude irónica e crítica de João Paulo Feliciano atingem a sua plenitude não apenas pelos materiais utlizados em Back Home, pela sua disposição no espaço e a tensão dialética que produzem, mas também pelos títulos que o artista atribui a cada uma das partes que compõem a instalação num jogo de palavras – característico da sua prática artística – que induz o espectador numa experiência reflexiva. Intitulada Gimme Some Protection a estrutura metálica que simultaneamente ilumina a segunda parte da instalação, destacando-a no centro da ação e a envolve qual escudo protetor, propondo ao espectador uma relação ambígua entre interior e exterior[2]. Felling Fine Here, o volume central da obra ergue-se como palco, altar, que circundamos à medida que observamos as sucessivas camadas que o compõem, camadas de significação que lemos num exercício de interação com a obra através da observação e da deslocação. Constituído por materiais de propriedades isolantes – espuma, contraplacado, telhas cerâmicas, tela isolante e vidro – Feliciano alude à função primordial de abrigo, ao mesmo tempo que estabelece uma tensão dialética entre a banalidade dos materiais que constituem a instalação e a solenidade da composição que parece situar-se entre o habitáculo e o templo, numa celebração do que a realidade contemporânea tem de mais essencial e de mais precário.[3]
A realidade urbana, o destaque que Feliciano atribui aos materiais e à problematização dos suportes manifestam-se num corpo de trabalho que foi também influenciada pela relação com a música e o universo do rock em obras que prenunciam uma fase mais discursiva do artista e que se inscrevem no campo da realidade social e cultural. A este propósito destaquemos Stage Real Fake, 1990, em exibição no átrio do Edifício de Restauro, através da qual o artista propõe-nos uma reflexão sobre o universo da representação em palco – musical ou teatral – e sobre a relação entre o que é real e representado. A densidade filosófica da questão do verdadeiro e falso e da ideia de simulacro presente em Stage Real Fake, é explorada por Feliciano não só no seu trabalho enquanto artista, mas também na sua atividade musical, recordemos a este propósito a sua banda Tina and the Top Ten que se autointitulava the very first all Portuguese fake American rock’n’roll band. A complexidade do tema e do binómio realidade/representação é-nos introduzida e desenvolvida habilmente pelo artista, desde logo pelo título simples e irónico que atribui à obra lançando-nos desse modo no jogo entre o que verdadeiro (Real) e falso (Fake), jogo de dualidades que subsiste na simplicidade da instalação: um palco sobre o qual se apresenta um pequeno paralelepípedo negro iluminado por um projetor. O palco enquanto local de representação e fingimento, que nos remete para as artes cénicas, mas também de lugar de catarses e onde as coisas acontecem de verdade; a forma geométrica simples do paralelepípedo, emblemática do objeto minimalista, mas de claro sentido metafórico, que tanto pode ser interpretada como uma caixa negra ou um simulacro, uma metáfora, que podemos associar à metáfora do monólito no filme 2001: Odisseia no Espaço do Kubrick.[4] A propósito do sentido dual e paradigmático da instalação destaquemos a genialidade de Feliciano ao utilizar placas de teto falso nas faces laterais do palco – que parecendo de madeira são de plástico – numa acentuação da duplicidade, do processo de dissimulação, de simulacro e fingimento que tanto fascinam o artista e que são reveladoras de uma postura conceptual.
A exploração e o cruzamento de diversas linguagens artísticas, bem como aspetos da cultura popular urbana definem a prática de Feliciano, como tão bem nos revelam as obras em exibição na presente mostra, não obstante as balizas temporais que as separam. O interesse pela luz e cor enquanto base e suporte para os seus trabalhos através dos quais explora novas possibilidades de composição, representação e diferentes fenómenos de perceção encontramo-lo em Newtron, 2004 e Ajax, 2022. Aliando a iluminação, a eletrónica e o vídeo enquanto suportes Feliciano explora em Newtron novos tipos de luminosidade e paletas de variações cromáticas. Como uma pintura em movimento, Newtron consiste na unidade modular led de um ecrã gigante, que nos revela o fragmento do registo vídeo de um jogo de futebol apenas identificável em alguns excertos. Seduzidos pela visibilidade abstrata conferida pelos pontos luminosos dos pixels, Newtron apresenta-se enquanto superfície pictórica animada, equiparando a imagem digital à pintura e o pixel à pincelada própria do pontilhismo[5]. Funcionando com base no princípio da “mistura óptica”, que esteve na origem da pintura impressionista, e que descreve a capacidade do olho humano em conjugar pontos de cor que originam uma cor resultante da sua combinação, a baixa resolução do painel vídeo de Newtron evidencia o aspecto físico dos leds enquanto fontes individuais de luz, desmontado a “mistura óptica”[6], revelando-nos um posicionamento crítico por parte do artista em relação às tecnologias digitais.
Terminamos o nosso percurso com Ajax, obra inédita concebida para o campus da Universidade Católica, em que a luz e a cor, resultantes de filtros instalados sobre as janelas, alteram a natureza cromática do espaço por elas iluminado. A intervenção do artista nas janelas do corredor da Escola das Artes, mergulha o visitante numa experiência imersiva, através da qual assistimos à transposição dos limites, num jogo de formas e cores cambiantes que amplia o espaço da obra, em que esta se autonomiza enquanto evento, dentro e fora do seu suporte.
Mediante o conjunto de trabalhos que compõem Ajax et Plures somos confrontados com a multidisciplinaridade da obra de João Paulo Feliciano, o modo hábil com que cruza escultura e som, espaço e luz, pintura e vídeo, territórios de trabalho dos próprios alunos das Escola das Artes, num diálogo profícuo com o estabelecimento de ensino enquanto espaço expositivo.
Ajax et Plures, está patente na Escola das Artes da Universidade Católica no Porto até 1 de novembro de 2022.
[1] VALSASSINA, Joana – João Paulo Feliciano: Ajax et Plures, obras da Coleção Serralves. Brochura exp. Porto: Fundação de Serralves, 2022, p. 6
[2] Idem, p.7.
[3] Idem, p.6.
[4] VISCONTI, Jacopo Crivelli – “Conversa à distância do e-mail”, in The Possibility of Everything: João Paulo Feliciano, Selected Works 1989-1994. Cat. Exp., Lisboa: Culturgest, 2006, p.73.
[5]VALSASSINA, Joana – João Paulo Feliciano: Ajax et Plures, obras da Coleção Serralves. Brochura exp. Porto: Fundação de Serralves, 2022, p.8.
[6] João Paulo Feliciano. Cat. Exp., Porto: Fundação de Serralves, 2004, p.10.