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Kuril Chto X Umbigo

Esta entrevista intimista com o artista de pseudónimo Kuril Chto destaca a sua carreira, posição política, exposição atual, futuros projetos, e a posição político-filosófica enquanto artista russo a trabalhar em Portugal.

Kuril Chto (nascido em 1989) é um manipulador no mundo da arte contemporânea. Utiliza a ironia e o absurdo como método criativo para explorar a arte popular, os memes e o quotidiano. Tendo como foco a rotina e as práticas DIY, a particularidade da sua abordagem artística reside no humor como forma de abordar questões sociopolíticas tão grandes e por vezes dolorosas como o patriotismo ou a cacofonia informativa.

Kuril Chto trabalha com vários meios diferentes, desde o desenho à pintura, passando pelas artes aplicadas, memes digitais e intervenções urbanas. Neste momento, está concentrado na combinação de meios. O cruzamento da arte popular contemporânea (memes) com a estética DIY (hobbies) tornou-se a sua principal área de interesse. Kuril Chto acredita que este é o campo onde a nova sinceridade está escondida.

Josseline Black – Como situarias a estética do teu trabalho no contexto da pop art?

Kuril Chto – Contrariamente à cultura de massas e à produção industrial de objetos idênticos, foco-me na experiência individual de um determinado item, tornando-o o protagonista do meu trabalho, mesmo que esse objeto seja uma das centenas de milhares de coisas genéricas, uniformes e idênticas que encontramos, como uma cadeira azul de plástico ou uma máquina de secar roupa.

JB – Consegues estabelecer a diferença entre artista e ativista? A arte é inerentemente política?

KC – Acho que a arte é consequência da resposta do artista aos acontecimentos mundiais, externos ou internos, uma espécie de reflexão da experiência. Obviamente, arte e ativismo são duas práticas autónomas, que se podem misturar ou manter-se independentes. Em relação à política, neste momento a situação na Ucrânia mudou milhões de vidas, o mundo está à beira da guerra nuclear, e a arte não pode ficar de lado nestas circunstâncias. As obras estão a tornar-se cada vez mais politizadas. Não sou e não tenciono ser um ativista político. Interessava-me por outros assuntos antes da guerra, mas agora na minha prática artística só posso falar sobre o conflito. Se a situação fosse menos grave, abordaria outras questões. Além dos temas políticos, existem muitos outros de interesse artístico.

JB – Como é que a tua exposição Goods, na Galeria Vokshod em Basileia (até 1 de agosto), está relacionada com a atualidade e a recente invasão da Ucrânia? Qual a relação entre a imagem central da exposição, a máquina de lavar roupa, e a guerra em curso?

KC – A máquina de lavar roupa tornou-se um meme terrível: um símbolo do absurdo posto em evidência pelas forças armadas russas. Chegam em tanques a cidades pacíficas e bombardeiam-nas em nome da paz, lutam contra fascistas-fantasma no território de um estado livre e vizinho, matando e violando civis. Uma guerra sem sentido, mas com consequências trágicas. Os soldados russos, devido à sua pobreza, roubam tudo o que podem. Andam com máquinas de lavar pelos campos de batalha até aos correios e depois enviam-nas para casa. A internet está cheia de vídeos de militares russos em fila nos correios, a tentarem enviar a pilhagem para casa. A máquina de lavar roupa tornou-se um símbolo que une as tropas russas numa só ideia – a possibilidade de roubar.

JB – Consegues definir a forma como a tua prática artística tem mudado desde que saíste da Rússia? Quando estavas em São Petersburgo, qual era a tua relação com o mercado artístico europeu e as tendências da arte contemporânea?

KC – Na Rússia, o tema principal do meu trabalho era a crescente falta de liberdade e repressão. Quando deixei o país, comecei a trabalhar mais o tema da beleza. Na Europa, passei a refletir mais sobre questões relevantes do continente. Por exemplo, estou a preparar um projeto de fotografia sobre o tema da nova masculinidade.

JB – No ainda relevante livro Estética Relacional de Nicolas Bourriaud, ele escreve sobre as vertentes estéticas da construção da subjetividade quando esta se relaciona com uma obra de arte: “A primeira questão que nos devemos colocar quando olhamos para uma obra de arte é: – Permite-me existir à sua frente ou, pelo contrário, nega-me como sujeito, recusando considerar o Outro na sua estrutura? O fator tempo-espaço sugerido ou descrito por esta obra, juntamente com as leis que a regem, encaixa nas minhas aspirações da vida real? Será que critica o que é considerado criticável? Poderia eu viver na estrutura espaço-tempo desta realidade?”

Qual seria a tua resposta? O teu trabalho dá ao espectador uma ‘oportunidade’ de existir diante dele, ou, pelo contrário, nega ‘o sujeito’?

KC – As minhas obras permitem que o espectador exista à frente delas e até o convida a participar, através das reflexões nos espelhos colocados na superfície das peças.

JB – Que tipo de público esperas alcançar com o teu trabalho?

KC – Um trabalho sobre guerra custa-me. Estudar este tema é como esfregar uma ferida. Tenho de mergulhar cada vez mais fundo neste horror, ouvir as escutas das conversas dos soldados, a maneira como telefonam para casa e choram, ver tanques explodidos pelas minas, cadáveres desenterrados dos escombros. E, quando estou consumido por esta dor, procuro a chave para ela, ou um símbolo capaz de rebentar esta bolha. E depois começo a repetir este símbolo até a dor secar. Não há forma de pensar no espectador e no público. Eu não sei quem são essas pessoas, a minha tarefa passa por concretizar o trabalho. Se eu pensar no público, vou distrair-me da experiência da guerra e vai ser mais difícil encontrar o símbolo certo. Por isso tento concentrar-me no principal, aquilo de que gosto – a minha prática artística.

JB – Com os anos, passaste da pintura para a escultura. Pensas ir mais longe na instalação?

KC – Sim, por vezes a horizontalidade não basta, o volume oferece-me mais oportunidades para concretizar ideias. Estou agora a trabalhar com cerâmica e carbono e planeio evoluir nesta direção. Sonho também em começar a trabalhar com o mármore. Tenho experiência com granito, já esculpi um padrão na superfície da pedra, mas nunca formei um bloco inteiro. Tenho muito interesse em fazê-lo. Procuro oportunidades para implementar as minhas ideias, pois trabalhar com pedra, especialmente mármore, é uma atividade dispendiosa. Acabei de regressar de Carrara, onde visitei pedreiras de mármore e falei com vários escultores. Ao que parece, vou para lá nos próximos meses fazer esculturas de mármore.

JB – És influenciado por artistas à tua volta ou trabalhas em privado? Como defines a tua comunidade e como é que esta se organiza num sentido mais global, filosoficamente falando?

KC – Não tenho uma comunidade e sou alérgico à ação coletiva. Costumo criar trabalhos sozinho, mas por vezes recorro a uma equipa que me ajuda na implementação. A diretora do meu estúdio, a Tanya, é responsável pela gestão; ela também contrata especialistas quando necessário. Raramente interajo com outros artistas. Inspiro-me em museus ou na natureza. Ter companhia distrai-me do trabalho e a minha produtividade cai, por isso tento evitá-la. Felizmente, o meu interesse e apreço pela pintura figurativa correspondeu a uma tendência mundial. Ao longo destes anos em que tenho trabalhado com arte, participando em muitas exposições, feiras, bienais e outros eventos no mundo inteiro, sigo sempre artistas interessantes no Instagram. Criei um espaço de informação no meu telefone onde posso desfrutar do estilo e estética do trabalho e manter-me a par das novidades.

JB – Por último, como é que viver e trabalhar em Portugal influencia a tua arte e vida interior?

KC – Gosto muito de Portugal. É um país bonito e pacífico, um espaço perfeito para pensar sobre as minhas ideias. Gosto da sensação de segurança. Aqui afastei-me dos temas de opressão e rumei ao tema da beleza. Por exemplo, a minha série Balenciaga foi inspirada por um lendário desfile de moda com tapete vermelho. Outro exemplo é a série de cadeiras com tecidos brilhantes. Porém, a fuga à guerra destruiu as minhas experiências com a forma e a cor, fazendo-me olhar para as atrocidades do conflito, numa tentativa de compreender o que está a acontecer. Espero que acabe em breve. Não à guerra.

JB – Ao olhar para o horizonte, o que planeias para os próximos meses, em Lisboa e mais além?

KC – Engraçado, vou ter outra exposição de vitrinas, desta vez numa janela. No dia 1 de setembro, em Lisboa, inaugurarei a minha miniexposição no espaço ARTNOM. É uma janela-galeria no estúdio de design Omnu Creative Houses, em Belém. Vou exibir dois trabalhos da série Balenciaga – uma caixa de sapatos de carbono e uma tela com a Marge Simpson num vestido Balenciaga. Acredito que quem passe por lá possa pensar que é uma montra da Balenciaga, o que seria engraçado. Também existem planos para uma segunda exposição antiguerra em Veneza, este outono. Estou agora a trabalhar no seu conteúdo e à procura de parceiros para a organizar. Enquanto houver guerra, considero meu dever profissional expressar solidariedade com a Ucrânia em palavras e atos.

Josseline Black é curadora de arte contemporânea, escritora e investigadora. Tem um Mestrado em Time-Based Media da Kunst Universität Linz e uma Licenciatura em Antropologia (com especialização no Cotsen Institute of Archaeology) na University of California, Los Angeles. Desempenhou o papel de curadora residente no programa internacional de residências no Atelierhaus Salzamt (Austria), onde teve o privilégio de trabalhar próximo de artistas impressionantes. Foi responsável pela localização e a direção da presidência do Salzamt no programa artístico de mobilidade da União Europeia CreArt. Como escritora escreveu crítica de exposições e coeditou textos para o Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado, Madre Museum de Nápoles, para o Museums Quartier Vienna, MUMOK, Galeria Guimarães, Galeria Michaela Stock. É colaboradora teórica habitual na revista de arte contemporânea Droste Effect. Além disso, publicou com a Interartive Malta, OnMaps Tirana, Albânia, e L.A.C.E. (Los Angeles Contemporary Exhibitions). Paralelamente à sua prática curatorial e escrita, tem usado a coreografia como ferramenta de investigação à ontologia do corpo performativo, com um foco nas cartografias tornadas corpo da memória e do espaço público. Desenvolveu investigações em residências do East Ugandan Arts Trust, no Centrum Kultury w Lublinie, na Universidade de Artes de Tirana, Albânia, e no Upper Austrian Architectural Forum. É privilégio seu poder continuar a desenvolver a sua visão enquanto curadora com uma leitura antropológica da produção artística e uma dialética etnológica no trabalho com conteúdos culturais gerados por artistas. Atualmente, está a desenvolver a metodologia que fundamenta uma plataforma transdisciplinar baseada na performance para uma crítica espectral da produção artística.

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