Metamorfoses: Imanência Vegetal, Mineral e Animal no Espaço Doméstico Romântico no Museu da Cidade – Extensão do Romantismo
O Museu da Cidade – Extensão do Romantismo[1], no Porto, situado na Quinta da Macieirinha, tem um novo programa museológico e reconfiguração expositiva, que irá estar patente por um longo período de tempo, com esporádicas introduções de peças e rotatividade de núcleos.
Metamorfoses: Imanência Vegetal, Mineral e Animal no Espaço Doméstico Romântico é o título que dá o mote ao projeto expositivo, tornando visível a noção de domesticidade e de casa Romântica, enquanto lugar onde se recriam e acolhem as várias dimensões do cosmos, da natureza e da humanidade. Partindo dos espaços de trabalho de alguns dos mais proeminentes pensadores e investigadores Românticos, como Johann Wolfgang Goethe ou Alexander von Humboldt – assim como João Allen -, a ideia de casa é apresentada como espaço heurístico, de investigação e de observação do mundo, e aparato museológico, noções entretecidas através de uma multiplicidade de peças, constituindo uma mundividência Romântica à luz da contemporaneidade.
A exposição reúne obras do acervo do Museu da Cidade, assim como do antigo Museu Municipal do Porto – o primeiro museu público em Portugal, criado em 1848 – com origem no Museu Allen, que albergava peças do colecionador, revelando uma curiosidade, pesquisa e interesse eclético, característica do Romantismo.
Metamorfoses divide-se em oito núcleos, unidos por um desenho museográfico de Luís Tavares Pereira, composto por plataformas, vitrines, jogos de luz e espelhos, que conferem à casa um “efeito museu”, por meio de uma luminância, transparência e amplitude onde as várias peças tanto estão protegidas como acessíveis e destacadas, potenciando uma viagem pelo universo Romântico. Simultaneamente, somos incentivados a refletir sobre o seu legado, nomeadamente a introdução da natureza no centro da vida e do pensamento, a ideia de viajante que recolhe, observa e classifica várias espécies ou objetos, conceptualizando-os através da livre associação, dos sentidos e da imaginação, mas também a relação com o colonialismo, segundo o pensamento atual. Cada objeto é disposto no espaço de acordo com uma dialética, sobressaindo as suas várias metamorfoses, ambiguidades e transformismos, num questionamento constante e descoberta incessante.
Na primeira sala, Animais como retratos de príncipes, citação de Jaime Fernandes, um dos mais reconhecidos artistas portugueses de arte bruta/outsider, apesar de não ser da época Romântica, invoca um certo imaginário, refletido nas peças expostas e no tema da domesticidade, particularmente a dignificação animal. Cão & Cadela (China, 1735-1796), um casal de cães retratados como príncipes, lado a lado com uma litoteca, um Amuleto de Chu (sécs. VI/III a.C.), ou uma pequena escultura de Ísis com Hórus ao colo (sécs. VI/III a.C.) contêm vários simbolismos, dispostos num dispositivo poético, questionando o seu carácter material, simbólico e temporal, realçando o desejo dos Românticos de perceber o mundo, abarcando-o no espaço doméstico. Vejamos que alguns destes objetos poderiam estar, ou estiveram em casas, como na de Guerra Junqueiro, Marta Ortigão Sampaio, ou João Allen.
Seguidamente, entramos em Gabinete, uma reencenação do espaço de trabalho Romântico, onde os objetos estão acessíveis ao olhar, destacando-se uma aguarela de António Carneiro, juntamente com uma caveira, ilustrações cartográficas, elementos da natureza e uma das primeiras edições de Kosmos de Humboldt, determinante para o pensamento da época, pela reflexão de que tudo está ligado na natureza. Não obstante a conexão que é feita com a Teoria da Imaginação de Goethe, pela amizade e partilha dos dois pensadores. Gabinete realça poeticamente a simbologia e o carácter ambíguo do projeto Romântico, entre imaginação e razão, na demanda pela compreensão do Cosmos.
Mesa Borboleta (séc. XIX) de mármore preto e embutidos em pedras polícromas e madrepérola, inicia o percurso do núcleo Casulos, dedicado ao tema da borboleta, da crisálida e do transformismo. Nestas salas, metaforicamente abertas em leque, têm expostas peças de vários materiais, tamanhos e motivos vegetais, como uma coleção de peinetas de cabelo feitas de tartaruga, numismática, minerais, insetos ou leques. Neste rodopio alucinante encontramos ressonâncias com o núcleo seguinte, Caleidoscopia e Transformismos, onde por entre boleros, echarpes e peitilhos rendilhados temos a coleção de papéis recortados da Casa Vitorino Ribeiro, um conjunto de peças decorativas com formas geométricas, propondo visões miméticas de microacontecimentos. O que sobressai é Santo António (autorretrato, c.1902) de Aurélia de Souza, pintura a óleo à escala 1:1, em que a artista se faz representar de santo, interpelando o observador, num gesto provocatório, que nos seduz pelo seu transformismo, metamorfose e ambiguidade, como uma crisálida que passa a borboleta.
Quando subimos ao segundo piso do Museu, não deixamos de reparar numa portentosa colcha de origem indiana, pela sua cor e elegância na representação de motivos vegetalistas, como se fosse uma trepadeira com um corpo de dragão, que para além de nos invocar mais uma vez a temática da metamorfose, sugere uma ascensão ao piso de cima. Assim, somos introduzidos ao núcleo Le Douanier Rousseau, pintor que embora não seja da época Romântica, na sua obra presenciamos a uma natureza misteriosa, motivos vegetais e animais delicadamente entrelaçados com uma naïveté, numa trama que preenche a totalidade da tela. Tal como a tapeçaria que se encontra no centro desta sala, com temática alusiva à caça, revelando um certo lado indómito da natureza, que por sua vez dialoga com as peças expostas de Bordallo Pinheiro e com pinturas de naturezas mortas, num rodopio de coisas que se ecoam umas às outras. Não descorando, uma aguarela de António Carneiro, feita a partir de uma visão de Teixeira de Pascoaes, um dos autores proeminentes do Romantismo português.
O núcleo seguinte, Da mão à boca – Os sentidos não enganam, parte tal como a montagem conceptual da exposição, da Teoria da Natureza de Humboldt e da Teoria da Imaginação de Goethe. As peças manifestam a capacidade de imaginarmos e criarmos imagens através daquilo que a natureza nos dá, como potes, pratos ou vasos em cerâmica, ou prata, de tempos e localidades diferentes, sugerindo a relação entre a mão que produz e a boca que ingere. Destaca-se uma pintura de Marta Ortigão Sampaio, uma mesa imponente em madeira, com pés em forma de pelicano, remetendo para a sua simbologia de animal sacrificial, que dá o ventre e o estômago aos filhos, e três pinturas de naturezas mortas, com gorazes, repolhos, faisões e penas, trazendo uma ideia de mundo suspenso, em queda e precário, característica do Romantismo em estreita ligação com a atualidade.
O ponto nevrálgico de Metamorfoses é a sala Cosmos – Amostra e Caos, uma reconstituição de uma proposta de gabinete de curiosidades, uma das primeiras codificações de museu, uma junção de objetos e matérias transformáveis, reescritas e volvidas de significado. As práticas colecionistas existem desde tempos pré-históricos, pela reunião de objetos fascinantes, muitas vezes passados por gerações. Na atualidade, ainda existem e são preservadas coleções religiosas, civis, de reis, ou dignatários, muitas delas tornadas públicas. As nossas bibliotecas guardam um incomensurável conhecimento material e imaterial ao longo de séculos. Os gabinetes são originários do studiolo renascentista, sala dedicada à leitura, estudo e escrita, repleta de obras de arte ou objetos que auxiliavam a investigação. Pertencentes a principies, humanistas, ou mercadores abastados, os studioli vão dar lugar às Kunst-und Wunderkammer, ou Câmaras de objetos artísticos e de maravilhas, abarcando uma vasta amplitude de objetos produzidos por humanos (artificialia), espécimes naturais (naturalia), peças de locais fora da Europa (exotica), assim como instrumentos científicos (scientifica). Mais tarde, segundo estas coleções, vão surgir os gabinetes de curiosidades, reflexo do espírito de uma época de grande curiosidade científica, recolha e estudo de objetos provenientes das colónias, ou diferentes locais um pouco por todo o mundo. Cada gabinete era a expressão, curiosidade e espírito científico do seu proprietário, que vivia no tempo do colonialismo europeu, de descoberta e exposição do que se chamava de exótico, novo e diferente. Estes locais eram de domínio da alteridade e da domesticação de objetos de fascínio. Cosmos é uma sala espelhada em semicírculo, repleta de um manancial de objetos, desde animais embalsamados, a fósseis de plantas, ovos de avestruz a dentes de baleia, taças adornadas a amuletos. Nesta divisão inquietante e estranha, tudo reflete e reverbera, devolvendo um mundo como lugar de diversidade, mas também de nostalgia, melancolia e perda, num constante questionamento sobre a História e o lugar da humanidade no cosmos.
Em tom de reflexão final, restamos no Salão, um espaço para artes performativas e galeria de pintura, onde está exposta uma versão preparatória de uma pintura de António Carneiro, mostrando as três etapas da vida numa espécie de eterno retorno, ecoando com três pinturas de Jean Baptiste Pillement, representando a bonança, a tempestade e o naufrágio, num crescendo dramático, plasmando as temáticas mais recorrentes do Romantismo, assim como simbolicamente emanando o seu espírito de excesso, em queda e ruína, mas também de curiosidade científica, abundância e idealidade. Ressonâncias com o tempo em que estamos a viver, em que questionamos tudo novamente, como a nossa relação com a natureza, a forma como apreendemos o mundo, ou o modo como comunicamos e nos organizamos comunitariamente.
Metamorfoses: Imanência Vegetal, Mineral e Animal no Espaço Doméstico Romântico, está patente noMuseu da Cidade – Extensão do Romantismo, até 31 de dezembro de 2023.
[1] https://museudacidadeporto.pt/estacao/extensao-do-romantismo/