Balbucio em dó menor ou, ilusão da fuga à Imagem
I.
Se nos pudéssemos agora ver, a poética morreria. Assim é, a dinâmica de lutar com a poética; tentar matá-la, desvendando-a, antes que ela nos mate a nós. A poética, ou a anulação dos sentidos pela banalização da Imagem.
Não me parece um bom começo, este. Lembro-me vagamente do que aprendi nas aulas de Língua Portuguesa e (confesso que) usei a internet para conduzir uma pesquisa sobre como redigir um texto. Sob a óptica da função poética, em prosa, não sei – tarda ainda a chegar a tragédia; escrever, aprende-se escrevendo, não para, mas com quem nos lê.
Através da relação com a prática artística, no contexto das artes plásticas, e agora que aqui escrevo, identifico-me enquanto autor (a neutralidade da manifestação ou do género do sujeito, não se sente ameaçada pela masculinidade da palavra para que lhe retalhe a Língua – que nos faz). No limite conceptual do espelho, relacionando os conceitos autor e sujeito lírico, para mim, não existe género; existem, sim, (livres) manifestações de ordem poética e construções de género.
Mas que difícil será, ser autor. Se actuar é já difícil o suficiente e a performance parece ser um escândalo, que difícil será, gerir todas as partes da Imagem.
Será possível escrever duzentas páginas de pensamento ambulatório, só escrever? Escrever como desenhar, sacudir o academismo e ir fazendo.
Não escrevo o suficiente para conhecer o que me interessa neste registo. Suponho que a prática faça o cavaleiro. Cavaleiro esse, com mais ou menos nobreza, que me leva à ideia de sujeito lírico (que não percebo desgrenhar-se do conceito de autor) – e à pressão social a que nos orquestramos na construção enquanto Indivíduo.
– não é Tabacaria, de Álvaro de Campos, o poema mais genial do século XX?
Que tenham as palavras, até esta instância introdutória, servido de modelo para a compreensão do objecto que se segue: uma divagação sobre algo que não poderá, vez alguma, ser delimitado de forma absoluta.
II.
A simultaneidade sucessiva dos fenómenos estéticos compõe o conceito de sensação enquanto Imagem (uma imagem em movimento). Se aqui estamos, através deste formato primo do teleponto, o momento deverá servir enquanto prova da ilusória estaticidade das coisas – ou, ilusão da fuga à Imagem.
Parece difícil explicar por que razão se gosta, ou não, de algo. Os processos de identificação vivem tempos estranhos, incertos; e na construção de uma cartografia de leitura minimamente binocular, ou múltipla, mais que saber mapeá-la, importa conhecer-lhe os códigos – figurando-a para construção do lugar comum.
– o anúncio de uma cadeia alimentar fast-food interrompe o fluxo melódico musical para publicitar que oferecem batatas-extra
Na cultura do fast, o excesso não basta; é pouco, ao entorpecimento dos sentidos. Os tempos que retratam a realidade dos tempos, nas relações humanas, também assim me parecem, como essas imagens. As coisas estão mais para quantidade com qualidade mínima, como as tais batatas-extra.
Tempo. Dinheiro.
Quantidade. Qualidade.
(Assumindo o ambiente capitalista, pergunto: como ganhar dinheiro sendo? Ninguém sabe, perguntem à malta do teatro.)
É ser-se, uma profissão? Imagino lembrar, primeiramente, ter querido ser astronauta. Para se ser astronauta é preciso estudar muito e saber-se sobre Física, por exemplo. É necessário que se estude muito, para tudo. E isso é bom. Parece, no entanto, irónico, que nos peçam que o façamos dentro de um sistema cada vez mais fragmentário em si mesmo, sem aparente reformulação e com disciplinas de fusão; como o sushi que comemos – e gostamos.
Ressoa a uma interessante experiência académica. Apenas não me parece que Portugal tenha mercado de trabalho estabilizado que possa sustentar esse menu exótico de profissões a prazo. Um cenário diferente parece acontecer para lá dos limites deste território geográfico, em que a formação se apresenta mais consolidada, talvez pela possibilidade da experiência integrada num mercado de trabalho real, mais fortalecido. Terei uma visão limitada da generalidade dos acontecimentos sociais? Funcionam as coisas de um outro modo? Ser astronauta parece agora mais fácil – if you’re aiming for the sky.
O Espaço não é ainda assim tão grande quanto a Terra. De um outro ponto de vista, numa acessão anti-romântica em que possamos descontemplar os hábitos de consumo das massas ( – e contextos e variáveis outras), a ideia da profissão do professor atrai. Deve ser (inserir adjectivo de carga positiva), a possibilidade de acompanhar e estimular o desenvolvimento cognitivo de um jovem – se isso não incluir, no acompanhamento ao Outro, a intervenção dos Serviços Sociais e do Tribunal de Justiça.
Quando ouço dizer que Deus é sádico, consigo conferir-lhe essa dimensão de existência humana. Faz-me confusão, a televisão; com as notícias tristes das imagens.
Entretanto lembro-me de que em algumas partes do Médio Oriente as mulheres já podem votar; mas não têm direito a personalidade jurídica independente – e desconfio que Deus seja comediante.
O espaço público (digital ou urbano, ambos de fisicalidade própria) é um espaço que se apresenta de cariz publicitário. Chamam-lhe também, algumas massas do corpo global da esfera política, de espaço democrático. Gosto de pensar a democracia enquanto lugar híbrido, ou objecto flexível que vai tomando forma da contínua tentativa em definir limites – operados e que operam, a construção do espaço público (enquanto lugar) através das necessidades particulares dos espaços privados – com variações, massas e camadas no intermédio que compõem uma dinâmica, ritmo ou fluxo. Todo o espaço é sensível.
III.
Sabemos que o avanço tecnológico e a democratização dos media, ao expandirem o campo comunicacional, fomentaram o desenvolvimento de novos modos de comunicar e adubaram as Ciências da Comunicação para a construção de novos olhares. Sabemos também, que é característico da contemporaneidade a fusão e consequente diluição de fronteiras. É desse esbatimento, afinal, que tratamos.
A distância é uma unidade de medida da sensação.
Ligar. Desligar. Mais próximo, menos próximo.
A (relativa) sensação de proximidade, conferida pelo uso de canais de comunicação através dos meios tecnológicos, parece, no entanto e em medida inversa, indicar uma trajectória de debilidade ao reconhecimento do Outro na construção da identidade.
Penso sobre a diluição do líquido mundo de Bauman, teclando a constante junção do imaginário dos mundos na insustentabilidade dimensional do lugar; que através do imediatismo da suspensão de limites espaciais (e de temporalidades cruzadas), vai fabricando o mais frágil e ofuscante tecido na história das relações humanas – consequentemente mapeando, uma alteração à qualidade dos afectos.
Depois de ter lido a “Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital”, lembrei-me das caixas de correio que encontramos no espaço público(-privado) urbano. Em algumas delas, podemos encontrar um papel autocolante rectangular, em que se pode ler a seguinte dística mensagem: “PUBLICIDADE (não endereçada) AQUI NÃO”.
Essa mensagem, expressa de modo claro e objectivo que: aquele indivíduo não deseja receber informação que não lhe é endereçada – o que não quer dizer que sempre assim cumpra. Pergunto-me: haverá algum um símbolo que assuma essa mesma função no espaço digital? Por que razão, se envia hoje publicidade por inbox em redes sociais (Instagram, Facebook, WhatsApp…)? Qual o grau, em arranjos físicos, de proximidade cognitiva entre utilizadores?
Na comunidade, existe ainda o espaço privado. Não creio que pessoas que morem no mesmo prédio cometam a atrocidade de colocar publicidade nas caixas de correio umas das outras, isso seria uma invasão à esfera privada. Assemelho esse comportamento ao do agente publicitário que trabalha numa operadora de telecomunicações (and it looks like a compulsive gambling symptom) – mas esse ainda nos cumprimenta.
É curioso, que existam trabalhos cuja função seja invadir a privacidade do Outro. E que, de tudo o que potencialmente levanta um problema de ordem ético-moral, seja este, o melhor de todos os mundos possíveis.
Se a intenção não for poética, não existe real partilha; é apenas uma transposição ao limite do Outro – isso é um não-espaço, um grau de liberdade onde o vazio habita.
Na era hedonista do self media, construída sobre os ruidosos pilares da sociedade do medo, parece-me um atentado ao desejo, levar com a ferramenta-mãe do capitalismo pelos sentidos adentro. A liberdade é um movimento de função poética – fechem os olhos.
Patrícia Serrão não escreve ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico.