Top

Morre Longe de Tiago Alexandre na Appleton Square

Acelerando, sozinha, pela noite, Morre Longe, a mais recente exposição de Tiago Alexandre na Appleton faz-se de um percurso: seis capacetes de mota dispõem, nos seus visores, 6 pinturas líquidas como stills de um trajeto, referido na folha de sala como o caminho da casa do artista até ao Casino de Lisboa. No espelhamento desse falso vidro, aqui apenas superfície, não vemos reflexo, mas a própria visão do condutor, num deslocado diálogo dentro-fora. Não vemos quem está dentro dos capacetes agigantados. Negros, anónimos, imperdoáveis, fazem-se masculinidade como uma máscara impenetrável que de nada tem medo. Ou esconderijos automáticos para um conteúdo latente, secreto. Quem somos nós ali? Talvez os próprios condutores. Afinal, parece haver 3 dimensões opostas que colidem:

  1. O capacete que olha na nossa direção, cobrindo alguém que não vemos.
  2. O visor que espelha a visão do condutor, e não o reflexo do material.
  3. Nós que, agentes exteriores, percecionamos essa visão.

Há aqui qualquer coisa de simulação, jogo de computador. Talvez essa ação de nos colocarmos na pele de outro que não nós – porque no fim de contas, naquela galeria vazia, de capacetes como sepulcros, somos nós muito provavelmente os condutores daquele percurso, ele próprio a trama, dando sentido ao que vemos. E o que é esse Morre Longe? Grito de descaramento, falta de pudor. A provocação de quem se sente camuflado, protegido dentro de uma capa. Ou talvez o anúncio do nosso atropelamento por essas enormes, secretas motas saindo de uma parede que se derrete, à nossa frente.

A luz branca, imparcial, como uma morgue, torna os objetos estáticos como vestígios. Corta-lhes o que poderia aparentar cinemático, noturno, imersivo.

Dos 6 capacetes, 5 são negros, 1 branco. Neste último inscrevem-se caracteres japoneses que fazem ler O Canto do Cisne. Um cisne branco. Pureza, luz, sobre um cenário noturno, como uma prece. Vida imparável, onde a felicidade se encontra nos lugares de passagem, vítima inocente de um mundo esmagador em espaços liminares convertidos a rotina. A letra japonesa é caricatura pop, enunciadora de um imaginário específico desta era pós-internet, estrangeirismo já global, deglutido a animes ou falsa nostalgia, música anos 80 convertida a vaporwave e slowed and reverb. Sim, há no drama subjacente a estes capacetes, um possível rádio onde se ouve música. Não me lembraria do conforto solar da convocada na folha de sala, o Hotel California dos Eagles, mas também fará sentido. Espelha a utopia desse lugar ideal, alucinatório, onde velozmente se pretende chegar, além – o mesmo que Variações nos falou.

Há um conjunto de músicas e álbuns que poderiam servir de soundtrack: o ofuscamento de Donda, a violência de Motomami, a pose de Nightcall, a insatisfação de Estou Além.

As motas fazem parte do imaginário artístico de Tiago Alexandre desde o início do seu percurso artístico: vemos as suas pegadas em obras construídas em torno de luvas de condução ou, diretamente, na sua primeira exposição na Balcony Gallery, Words Don’t Come Easy, título também assimilado de um hit synth-pop dos anos 80. O imaginário parece circular. Quem acelera numa pista de corridas quer chegar ao lugar de onde partiu. Será Morre Longe uma exposição sobre saudade?

Morre Longe de Tiago Alexandre está em exposição na Appleton em Lisboa até ao dia 20 de julho.

Miguel Pinto (Lisboa, 2000) frequentou a licenciatura em História da Arte pela NOVA/FCSH, através da qual veio a realizar um estágio no Museu Nacional do Azulejo. Participou no projeto de investigação VESTE – Vestir a corte: traje, género e identidade(s), alojado pelo Centro de Humanidades da mesma instituição. Criou e gere o projeto a Parte da Arte, que pretende divulgar e investigar o panorama artístico em Portugal através de vídeo-ensaios explicativos.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)