Interferências no MAAT
Ao entrarmos, panos pendem do teto como tapeçarias, cerrando-nos a entrada, impondo-nos um desvio ou um mergulhar. Quer queiramos ou não, evitá-los será impossível – tal como não poderemos evitar as vozes que ouviremos, contextos oclusos, marginalizados, culturas urbanas como interferências a uma norma imposta, agora, aqui, finalmente partida aos bocados. Os panos mostram-nos fotografias, instantes – o comboio vermelho da CP que atravessará a linha de Sintra (que também apanhei para estar agora a escrever isto), as portadas automáticas de acesso à estação de comboios, um túnel, um cenário noturno. Compostos por duas camadas, translúcidos, permitem ver, subtilmente, mensagens que se escondem na parte de trás, como tatuagens, graffitis, marcas na pele da imagem. Lêem-se desconstruções, reinterpretações do hino nacional sob crioulo cabo-verdiano e letra esgrafitada, viva, variações sob Hinu digra .. de Tristany, o também preâmbulo do seu primeiro álbum, que se ouve, baixinho, por entre a instalação. É a partir daqui que o comboio parte.
Começa-se no 25 de abril: vemos um conjunto de fotografias projetadas, homens de armas aos ombros, remetendo ao contexto de libertação das ex-colónias portuguesas, ao lado das geometrizações escultóricas de Gonçalo Mabunda compostas através de armas em desuso. Também Revolução de Ana Hatherly se inscreve num televisor antigo, cúbico, – cuja agência será notória na disposição de materiais vídeo ao longo da mostra – um exercício godardiano composto através da ruidosa montagem de cartazes e vozes, captando a euforia urbana, afirmativa de um progresso revolucionário ainda recente. Convocado nesta primeira secção é também o mural da Galeria de Arte Moderna realizado a 10 de Junho de 1974 (reformulado, temporariamente, no exterior da Central Tejo), por um lado através do relato vídeo da sua execução, por outro, indiretamente, através das fotografias de Julião Sarmento que documentam o infeliz incêndio que dizimou a galeria em 1981. Mural que terá sido prova de libertação e, posteriormente, de exclusão, tal como as narrativas que se irão contar. O texto de sala da secção acaba com a evocação dos “trabalhadores contratados” vindos de Cabo Verde que irão reformular ativamente a cidade de Lisboa e cuja história começaremos agora a ouvir.
Viajamos nessa direção. Observamos excertos de um artigo do desaparecido Jornal Independente, publicado em 1993, onde se caricaturam, exagerada, preconceituosamente, grupos de jovens negros provenientes da margem sul e da linha de Sintra, divididos em categorias de gangues, tais como Zulus, Raps e Black Boys, tidos como responsáveis pelos crimes organizados ocorridos nas ditas áreas. Ao lado, um conjunto de documentos contrapõe estas generalizações, e o interessantíssimo documentário Tá-se bem Geraçon Rap, contextualiza estes mundos periféricos através da exploração do hip-hop, agente emancipatório destas novas periferias. É de destacar a instalação Mankaka Kadi Konka Ko de Filipa Bousset, dividida em três conjuntos: uma pilha de livros amontoados no chão, sujos, pintados, usados; um estrado de uma cama, preta, despojada, em cuja colcha se cosem retratos de crianças, frases, tecidos como marcas; uma pintura de uma pessoa embrulhada num manto negro em posição fetal, cuja almofada é o único rasgo de cor. Compõe-se uma reinterpretação de vivências, evocativa, quase diarística. Surpreendente é também Dispidida de Fidel Évora, dedicado à memória de Alcindo Monteiro, e onde um ecrã disposto numa moldura, como se de um quadro se tratasse, se confunde, à primeira vista, com as duas serigrafias, dramáticas, mas quase matemáticas, que a compreendem.
Passamos do desenho social ao urbano. Casa Portuguesa de Mónica de Miranda faz-se na sua frieza rigorosa, paradoxalmente, uma das obras mais empáticas da mostra – referenciando o conceito idealizado da “Casa Portuguesa” proposto por Raul Lino, assente em contextos nobres e burgueses definidos por solares e casas senhoriais, a artista enuncia arquétipos sinceros da casa portuguesa, as habitações rurais, urbanas ou periféricas, com que nos cruzamos diariamente e que compõem a paisagem habitacional do nosso país, dignificando-os, passando da fotografia à maquete, condensando-lhes um padrão como se de ambiciosos projetos arquitetónicos se tratassem. Em frente, estará outra maquete, irreal, cartoonesca, Pontu de Vista de Sepher Awk, artista pertencente ao coletivo Unidigrazz, responsáveis pela instalação inicial que nos introduziu à exposição. Pontu de Vista resulta como uma separação desta dimensão documentária da exposição para um imaginário subjetivo.
O conjunto de obras que o coletivo nos apresenta compreendem o que diria ser o ponto alto da mostra. Talvez a isso ajude o núcleo central, aberto, mas isolado pelos lados, como uma cápsula, em que as suas obras se dispõem. Este isolamento parece justificar-se pelo imaginário urbano-onírico, que se distancia de quase tudo o que aqui vemos exposto. Já tínhamos presenciado os seus trabalhos em Linha Imaginária, a belíssima e quase premonitória exposição que se mostrou no final do ano passado no Museu das Artes de Sintra. A naturalidade com que se movem entre referências culturais do país para as retorcerem num imaginário direto, irónico, quase surreal, mas sempre em algum ponto percetível aos mais diferentes espectadores, atrai-nos imediatamente. Veja-se o armário de madeira antigo com naperons nas prateleiras, como uma replica dos móveis das nossas avós, mas onde, deslocadas, pós-irónicas, se situam duas pequenas pinturas de Sepher Awk, Dias de ouru e noites de prata, introduzindo-nos à sala. Destaque também para as composições-selo de Onun Trigueiros, realçando-se Batota, uma noturna, azulada, composição em azulejo, um cenário de convivência, ou o trabalho de Rappepa bedju tempu, sob o mesmo meio, agora aplicado a um formato tridimensional, onde se lê, sem meias demoras, Fuck Tha Policia. Saímos com a intimidade emotiva do trabalho de Diogo Gazella Carvalho, e a sua monumental Mamã.
Do lado direito deste núcleo e por trás dele, entramos numa zona cinzenta da exposição. Observamos Fluor Scent de OBEY Sktr, uma pintura sob a parede do museu, como um graffiti transposto para um cenário afirmado. No entanto, neste caso, a institucionalização pareceu ditar as próprias decisões formais da obra, numa composição tecnicamente impressionante, mas excessivamente premeditada, onde não se sente a urgência expressiva, impulsiva, que dita o meio pictórico. Também as enormes pinturas de Marta Soares, apresentadas em frente, como paredes carcomidas onde se guardam resquícios de cartazes, num diálogo com o graffiti anterior, acrescentam, paradoxalmente, pouco à narrativa da exposição, à parte de uma abstrata sugestão formal que, aqui, parece situar-se demasiado à sombra das ideias de Vhils (curiosamente, fora deste seu pseudónimo, Alexandre Farto interviu na mostra enquanto curador).
Olhemos agora os retratos fotográficos espalhados ao longo do percurso, como testemunhos das comunidades nesta cidade periférica. Diogo VII compõe em Retrata-me um espelho da diversidade cultural que habita os bairros da Quinta do Loureiro, Casal da Boba e Pendão, enquanto Marta Pina apresenta em 25 fotografias, retratos dos artistas da editora musical Príncipe Discos, agentes fundamentais de divulgação duma identidade cultural africana assente nos subúrbios de Lisboa para portas internacionais. Já as obras de Abdel Queta Tavares enunciam-nos uma outra ligação, mais composta e ostensiva, onde retratos de mulheres e homens – pouco naturais, percecionados como modelos – se dispõem sobre um cenário maioritariamente pobre, mas cujas cores ressaltam em vivacidade, fabricando-se composições que parecem habitar um contexto de moda. Numa pertinente decisão curatorial, outros retratos habitam ainda os videoclips musicais em crioulo cabo-verdiano que vemos apresentados ao longo da exposição, procurando inserirem-se nos diversos núcleos expositivos. É louvável esta opção multidisciplinar que nunca nega meios de expressão artística em favor do que seria mais ou menos coadunável de se presenciar numa exposição, mas revê a sua individualidade como fundamental na identidade da narrativa que se apresenta. Apontando-lhe uma falha, indicaria, por vezes, a excessiva sobreposição sonora entre videoclips, que ao situarem-se próximos um dos outros resultam numa quase cacofonia, que premeditada ou não, resultaria melhor se disposta com maior calma e atenção.
A exposição termina em Padrão, uma reflexão sobre como o Padrão dos Descobrimentos terá espelhado as transformações e vivencias na cidade de Lisboa, no pós 25 de abril. Observam-se imagens ressonantes, conclusivas: numa fotografia de Alfredo Cunha de 1975, marca simbólica do início do processo de descolonização em Portugal, vemos contentores guardando os pertences dos portugueses regressados de Angola, parecendo magicamente dialogar, na sua disposição, com as rampas do monumento de Cottinelli Telmo. Já ao lado, numa fotografia vertical, chamativa, um conjunto de indivíduos, a que associamos este contexto periférico, posa em frente às estátuas dos navegadores portugueses deste monumento, onde o peso da pedra abala as suas estaturas humanas. Apresentam-se, no entanto, felizes, confrontativos, dizendo-nos que também eles são parte desta nação.
Deixa-nos uma bandeira de Rod, Pink Flag. Nela lê-se, finalmente: “Não foi Descobrimento, foi Matança”. É infeliz atentar que dois meses após a inauguração de uma exposição com esta carga de urgência, se tenha fundado com toda a pompa e circunstância, a pouco mais de um quilómetro deste local, um Museu do Tesouro Real que recusa em problematizar e contextualizar estas questões, albergando uma coleção que está com elas profundamente interconectada. Ainda temos muito que aprender. Felizmente, presenciámos já esta primeira grande exposição, testemunho inadiável, esperemos enunciador de outras novas interferências, chapada de luva negra.
Interferências encontra-se em exposição no MAAT até ao dia 5 de setembro.