Top

Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti

Talvez possamos entender Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti como um primeiro interregno numa longa viagem.

Talvez possamos entender Panamérica… como uma oração, um ritual – ou, em linguagem moderna, se quisermos, um estágio pedagógico.

Talvez possamos entender Panamérica… como uma ocupação rebelde de migrantes longínquos, turistas curiosos ou simplesmente cidadãos do mundo, que ocupam uma casa, rés-do-chão e primeiro andar, com os seus pertences, as suas crenças, compondo o espaço e o tempo com as suas linguagens e ritos à revelia do olhar civilizador e ocidentalizante.

Talvez ainda possamos entender Panamérica… como um bruxedo, uma invocação, um ato animista, que põe os rios a falar, as montanhas a ribombar, os céus a cair, as placas tectónicas a gritar – lá, bem fundo, nas profundezas dos mantos e dos sedimentos subterrâneos, dos núcleos fundentes e geradores.

Talvez possamos entender Panamérica…, enfim, como um exercício de resistência, um apelo às coisas vivas e invisíveis de Abya Yala – Oxumarê, Dambalah Hwedo, Aida Hwedo, Yewa, Bessen, Bafono Deka, Angoro – para a insurreição, a luta contra o extrativismo, o colonialismo, as ordens patriarcais e normativas do primado capitalista.

Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti é uma exposição de artefactos que põe a cultura e a história haitiana no centro do mundo, como palco de lutas que duram séculos. É uma mostra de livros, objetos locais, artesanato, vestígios de experiências vodu, plumas, velas, espanta-espíritos, têxteis, sementes, etc., que invocam ou convocam uma atmosfera comunitária – não é em vão que a performance-oferenda é fundamental neste ato.

Habitamos a história geológica do Ayiti; recuperam-se as memórias da colonização, do saque e da invasão pelos povos europeus; celebramos a Revolução de 1794 em que os escravos se rebelaram e instituíram o Ayiti como o primeiro país na América, talvez até mesmo do mundo, a abolir a escravidão; dançamos ao som da diáspora africana e dos escravos.

Depois dançamos ao som da importação cultural do Sul Global que fez o jazz americano; revemos o terrorismo financeiro, o terrorismo ambiental, a “Peste do Plástico”; descobrimos que a benemérita colonização das ONG’s que ocuparam o Ayiti após o terramoto de 2010 e que têm procurado suplantar-se às instituições locais; investigamos, com curiosidade, a geografia haitiana: os rios, a longa linha costeira, as montanhas, as florestas, os mangais; compreendemos o papel social, cultural e histórico do vodu na resistência à fúria disciplinadora da Europa, dos Estados Unidos da América e dos restantes países colonizados que perpetuam as práticas colonizadoras dos seus colonizadores: México, Argentina, Colômbia e Brasil.

O Ayiti é isso – um caldo cultural de povos ameríndios, africanos e europeus, cuja ordem, autoadministração e governação está sempre em reconstrução. O que muitos veem como um terror ingovernável, outros veem como possibilidade recriadora. O Ayiti é o espelho que devolve a imagem facínora, criminosa e monstruosa do “chamado” Ocidente. É por isso que fingimos não ver este país; é por isso que dispensamos uma notícia sobre este país; é por isso que associamos toda e qualquer experiência criativa deste país como um exercício “artesanal”, uma expressão “primitiva”, uma criação retirada de um programa de ação social, em que o booklet, para horror de muitos portugueses, se escreve numa mistura de “português do Brasil” e crioulo.

Na falta de mediação, é possível que Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti venha a ser sempre uma expressão incompreensível e incompreendida. Mas será sempre uma expressão necessária, crítica, capaz de escarafunchar um pouco mais a ferida aberta pelos quatro cavaleiros do apocalipse moderno: as alterações climáticas; o colonialismo; o capitalismo e o patriarcado. Até porque o futuro deveria ser sempre crioulo…

O projeto Panamérica, lavro e dou fé! Ato 1 – Haiti o Ayiti é organizado por Cecilia Lisa Eliceche e Leandro Nerefuh, reparte-se entre exposições e numa série de oferendas musicais, performativas e dançáveis, e pode ser vista e experienciada nas Galerias Municipais de Lisboa | Galeria da Boavista até 18 de setembro.

José Rui Pardal Pina (n. 1988), mestre em arquitetura pelo I.S.T. em 2012. Em 2016 ingressou na Pós-graduação em Curadoria de Arte na FCSH-UNL e começou a colaborar na revista Umbigo. Curador do Diálogos (2018-), um projeto editorial que faz a ponte entre artistas e museus ou instituições culturais e científicas, não afetas à arte contemporânea.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)