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Um pouco azedo, um pouco açucarado: O leite dos sonhos na Bienal de Veneza

Mesmo estando perfeitamente instalada, maravilhosamente iluminada, otimamente curada, na quinquagésima nona Bienal de Veneza, que abriu ao público a 23 de abril, falta algo de emocional. Infelizmente, esta lacuna não é um mero pormenor, ainda para mais sendo o título escolhido pela curadora Cecilia Alemani para o evento The Milk of Dreams (O leite dos sonhos), inspirando-se num livro da artista inglesa Leonora Carrington. Ao atravessar a exposição principal – quer nos Giardini da Bienal, quer nas salas do Arsenale – há uma sensação de lentidão; os olhos procuram uma novidade, e prosseguindo, ficamos impacientes por nos determos à frente de qualquer coisa que provoque uma surpresa, um assombro ou pelo menos um susto. Pelo contrário, pouco acontece, para além de encontrarmos centenas de obras que poderíamos ter visto num simples museu, seja pela sua dimensão, seja porque o tema da mostra é levado demasiado à letra, explicitado, gritado como que a disfarçar a sua fraqueza: como se sabe, cão que ladra não morde. Afinal de contas, resta pouco espaço à imaginação e os sonhos parecem ter sido substituídos por uma exposição que às vezes é mais parecida com um atlas etnográfico ou uma pesquisa oceanográfica e até antropológica. Talvez isto aconteça porque esta Bienal, imaginada e projetada ao longo dos últimos três anos, nasceu sob uma estrela bem estranha – a da pandemia num primeiro momento, e da guerra atualmente – e por isso ainda não se saiba como reaprender a olhar e a interagir com o mundo lá fora. Cecilia Alemani, numa entrevista que lhe fiz umas semanas antes do começo de The Milk of Dreams, explicou-me que, como teve de organizar tudo em Zoom – a aplicação que todos usámos na época da pandemia para fazer reuniões, mas também para ver os amigos -, a Bienal assumiu o tom de uma conversa íntima, o que explicaria o fato dela ser menos brilhante e mais sustentada na ciência.

Uma outra interpretação – válida para todas as exposições – poderia advir da nossa incapacidade de nos acostumarmos às novas ideias e questões que dominaram a arte nestes últimos dois anos, ou seja, como repensar as exposições, as obras, a própria fruição da cultura. Teremos nós a certeza que haja uma outra maneira de conceber uma Bienal que não seja entrar num percurso ciclópico, quer em termos de ideias, quer de dimensões? Mas, acima de tudo, estaremos dispostos a renunciar a toda essa avalanche de encontros, de descobertas, de viagens espirituais e físicas? A resposta é não, mesmo com tudo o que aconteceu.

The Milk of Dreams começa com uma grande escultura a representar um elefante, de Katharina Fritsch, artista que ganhou o Leão de Ouro pela sua carreira nesta edição; o elefante simboliza a sociedade matriarcal, mas também é um augúrio de graça e prosperidade no futuro. É uma pena, porém, que na direção do futuro não se veja muito claramente: muitas das artistas convidadas na Bienal estão bem longe de serem jovens, como nos casos de Andra Ursuta e Rosemarie Trockel, as duas que abrem O leite dos sonhos, assim como a segunda artista galardoada com um Leão de Ouro, Cecilia Vicuña, cujos magníficos desenhos desabrocham numa outra bela sala dos Giardini. É verdade que a idade exterior nunca foi um problema no que diz respeito à criatividade, mas numa Bienal de arte contemporânea parece um pouco bizarro escolher um tão grande número de artistas com uma história já bem marcada, para além de várias figuras falecidas há muito tempo, mesmo que essas sirvam como inspiração e guias.

Dezenas de figuras femininas lotam a Bienal, entre artistas desconhecidas e figuras de renome, como Barbara Kruger e Louise Nevelson. Muitos dos trabalhos apresentados são produtos de costura, tecidos, tapetes e quadros que mostram cenas bordadas com pérolas, pequenas conchas e fios elétricos, entre vários outros materiais, delineando uma tendência que, mesmo que queira ir para além das ideias reservadas à feminilidade mais tradicional, agarra-se a estereótipos ligados a um olhar bem colonial. Inspirada no maravilhoso trabalho do land artist Walter De Maria, a instalação de Delcy Morelos no Arsenale é uma das mais interessantes da Bienal, invadindo o espaço com uma extensão de terra húmida na qual o espectador pode passear, cheirá-la, tornar-se a cada passo mais parte dela, tal húmus fertilizante do futuro. Menos convincentes, ainda falando em tecidos e similares, são as cortinas coloridas de Emma Talbot e Kapwani Kiwanga, que se estendem igualmente no Arsenale. De facto, The Milk of Dreams parece assumir os contornos de uma sala burguesa, concebida para agradar ao gosto de um hipotético colecionador, mais próxima de uma ideia de mercado do que de uma verdadeira descoberta de um mundo novo, até porque – já o escrevemos – os sonhos estão longe e demoram a chegar enquanto os velhos modelos estão à nossa frente, mais vivos do que nunca.

Em suma, a Bienal de 2022 constitui, sem dúvida, o espelho perfeito da profunda mudança que cada um de nós está a viver: uma troca de hábitos que nos deixa despidos e a estranhar o nosso corpo – tal como acontece com os animais que mudam de pele. É impossível negar a evidência de uma nova época que está a chegar, mas os seus contornos são ainda obscuros e passam despercebidos, e nós não sabemos que roupas vestir para nos apresentarmos a esse desconhecido compromisso.

A situação dos pavilhões nacionais em redor não muda muito esta perceção geral.

Relativamente ao pavilhão belga, o artista Francis Alÿs teria merecido pelo menos uma menção: The nature of the game é uma exposição perfeita que nos guia através do universo poético dele, quanto mais não seja pela atmosfera mágica e encantada que se respira no espaço, onde a beleza dos filmes e das pinturas que formam esta pequena retrospetiva ajudam a compreender as paixões que inspiram Francis e a sua carreira. Um convite especial para descobrir os lugares e as ocasiões da vida que guiaram o artista ao longo dos anos.

Sobre o de França podemos dizer que Os sonhos não têm títulos, da francesa Zineb Sedira, é um pavilhão bem… francês. Isso mesmo. O gosto e a atenção pelo cinema e pelas suas formas de hoje e de ontem, bem como pelas cenografias, faz lembrar também a Nouvelle VagueOs sonhos não têm títulos ganhou uma menção especial de Melhor Participação Nacional, reconhecimento dado “pela construção de uma comunidade na diáspora e por ter examinado a complexa história do cinema além do ocidente”.

A atribuição do Leão de Ouro à Grã-Bretanha, contudo, não me convenceu. O pavilhão de Sonia Boyce, intitulado Feeling Her Way, foi premiado por ter mostrado “uma outra leitura de histórias pessoais utilizando o som e revelando uma série de narrações escondidas e não ouvidas cantadas por mulheres negras” – muito fácil como escolha, numa época que quer ser pós-colonialista a qualquer preço.

Por sua vez, Simone Leigh (EUA) poderia ter feito a sua Sovereignty numa qualquer galeria do mundo, mesmo na Matthew Marks, que a representa: o pavilhão está simplesmente mobilado com esculturas de todos os tamanhos, enquanto que seria indispensável – hoje mais do que nunca – pensar com o espaço, entrar na espessura da complexidade. Três anos para a simples colocação de umas estátuas parecem demais. Além disso, será que transformar o espaço dos EUA numa cabana africana ajuda o público a refletir sobre o tema do colonialismo? Onde está a imaginação que quer mudar o mundo?

No que ao pavilhão do Brasil diz respeito, Com o coração saindo pela boca, de Jonathas De Andrade é a representação mais original desta Bienal. Ao longo das paredes do bloco projetado pelos arquitetos Henrique Midlin e Amerigo Marchesin em 1964, Jonathas reúne, como uma espécie de espinha dorsal para esculturas, fotografias e uma instalação vídeo, mais de 250 expressões idiomáticas sobre o corpo para transmitir emoções que não encontram termos mais adequados do que os ligados ao aspeto físico humano para serem reveladas: “A linguagem oferece pistas para falar do sentimento coletivo a partir do corpo, e com isso tentar explicar o intraduzível”, diz-nos Jonathas a respeito do seu projeto super-pop.

Pela primeira vez ao fim de muitos anos, o pavilhão italiano tem qualidade suficiente para poder competir com os outros pavilhões nacionais: Storia della notte e destino delle comete, realizado por Gian Maria Tosatti, é um ótimo exemplo de como a arte pode questionar a história de um país e denunciar um estado de abandono e desmoronamento económico, usando a poesia e o silêncio. Tosatti, com a ajuda da cenógrafa Margherita Palli e sob a curadoria de Eugenio Viola (Diretor do Museu de Arte Contemporânea de Bogotá, na Colômbia), construiu três grandes salas a ilustrar o sonho industrial que a Itália viveu nos anos 1960 e 1970 e o seu consequente desaparecimento. Um grande flashback para olhar o futuro. Quem nos dera que seja melhor!

Por fim, mais quatro representações nacionais, bem originais.

Arábia Saudita: A longa árvore preta quase deitada no chão e vibrante de energia confere ao espaço do Reino da Arábia Saudita uma luz quase romântica. O artista, Mohannad Shono, já é representado pela galeria ATHR de Jeddah, e a sua intervenção na primeira edição da Bienal Desert X, no deserto árabe de Alula, distinguiu-se como uma das melhores. Um pavilhão simples, porém, rico em intuições.

Peru: O título do pavilhão peruano, dedicado ao artista Herbert Rodríguez, é maravilhoso: Peace is a Corrosive Promise ou seja, A paz é uma promessa corrosiva. Descobre-se aqui o que sobrou do labor do artista realizado nos anos 1980: enquanto o país soçobrava no caos e na derrota, Herbert trabalhava na defesa dos direitos humanos, apoiando o anarquismo com teatro, ações e pinturas, até fundar em 1989 o projeto “Arte-Vida”. Precioso!

Austrália: Cercado de um mega-ecrã a transmitir imagens de variados tipos (violência, guerra, sexo ou política), o artista Marco Fusinato tocará um violão elétrico ao longo de toda a temporada da Bienal, até ao fim de novembro. Uma jam-session contínua e ensurdecedora, a partir de uma banda sonora noise que pretende sublinhar a distopia do nosso mundo. Não é por acaso que o título do pavilhão é Desastres.

Coreia: O projeto do artista Yunchul Kim, Gyre, pretende investigar a ideia de mundo como labirinto, onde coexistem objetos não-humanos e realidade material. No pavilhão, aquilo que se vê são grandes esculturas móveis, que mudam de cor e de forma em consequência da luz e da atmosfera. Mesmo com uma paixão exagerada pela ciência e pelos seus resultados, as obras de Kim transformar-se-ão em breve num fantástico lixo tecnológico. Para onde terá ido a atenção devida ao meio ambiente tão proclamada pela Bienal?

A Biennale de Veneza pode ser visitada até ao dia 27 de novembro de 2022.

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte. Atualmente é Diretor Responsável da revista italiana exibart.com e colaborador para o semanário D La Repubblica. Além de jornalista, fez a edição e a curadoria de vários livros, entre os quais Un Musée après, do fotógrafo Luca Gilli, Vanilla Edizioni, 2018; Francesca Alinovi (com Veronica Santi), pela editora Postmedia books, 2019; Prisa Mata. Diario Marocchino, editado por Sartoria Editoriale, 2020. O último livro publicado foi L'involuzione del pensiero libero, 2021, também por Postmedia books. Foi curador das exposições Marcella Vanzo. To wake up the living, to wake up the dead, na Fundação Berengo, Veneza, 2019; Luca Gilli, Di-stanze, Museo Diocesano, Milão, 2018; Aldo Runfola, Galeria Michela Rizzo, Veneza, 2018, e co-curador da primeira edição de BienNoLo, a bienal das periferias, 2019, em Milão. Professor convidado em várias Academias das Belas Artes e cursos especializados. Vive e trabalha em Milão, Itália.

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