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Outra Língua, de Keli Freitas, Raquel André, Tita Maravilha e Nádia Yracema

Outra Língua é uma performance-conferência onde a performatividade está quase sempre na palavra. Através dela propõem ou imaginam uma intervenção na língua capaz de alterar a realidade que descreve, a realidade na qual habitamos. O texto é de Keli Freitas e a direção da mesma em conjunto com Raquel André. A música é de Odete, o desenho de luz de Wilma Moutinho, o vídeo de Afonso Sousa, o figurino de José António Tenente e o cenário de Elsa Romero e Saulo Santos. Estreou dia 26 de Maio na sala estúdio do Teatro Nacional D.Maria II.

Esta peça aborda o fenómeno da linguagem procurando entender como é que se forma e como funcionam os seus processos de significação. Reflete sobre a importância que a linguagem tem em todas as esferas da nossa vida. Movidas por todas estas questões, as performers entram num jogo de trocadilhos. O texto deste espetáculo brinca constantemente com as palavras, está constantemente a chafurdar no sistema que é a língua. A língua é dos instrumentos mais importante da nossa vida. Kelli menciona em conversa com Maria João Guardão (Maio, 2022) que as “coisas mais sérias, mais graves e as decisões mais importantes do planeta que afetam as pessoas diretamente, são decididas através da língua.” A linguagem é obviamente um sistema de poder. A língua está permanentemente a ser utilizada pela política de modo a cumprir com determinados objetivos, sejam eles de curto prazo ou de longo prazo. Podem servir para nos persuadir e enganar em momentos específicos, ou para distorcer e manipular culturalmente a imagem e as ideias que temos sobre o mundo e a sua história. A língua é o instrumento perfeito para fazer do passado o motivo pelo qual se vive no presente. A chachada que Portugal descobriu o Brasil habita num imaginário formado e alimentado em vários presentes de modo a alienar a identidade e o pensamento de quem fala português de Portugal. Destes presentes, a ditadura de Salazar e Marcelo Caetano é aquele onde mais facilmente conseguimos identificar esta alienação, foi aqui que nasceu a ladainha do luso-tropicalismo. O fascismo (em todo o mundo) formou mentalidades e as suas representações do mundo passam de geração em geração: é assim que continuam a ser alimentadas. Em Portugal e em todos os países pós-coloniais este processo fez-se e faz-se através da língua.

Na mesma conversa Raquel André levanta a questão do que é “isso de falar errado?” Acrescenta que “é-nos ensinado o poder da gramática, esse poder de conseguirmos controlar um discurso”. Como já foi aqui mencionado, a língua é um instrumento, e como qualquer outro instrumento, o seu propósito é servir de meio para a execução de alguma coisa. A língua é o instrumento através do qual formamos discurso. Discurso no sentido primário que se refere à articulação de palavras. Não estou a qualificar o discurso que a língua forma. Nesse sentido, forma uma constelação inumerável de discursos. A língua executa o discurso e a gramática organiza-o. A organização da gramática é diferente da execução do discurso: a primeira é muito mais manipulável que a segunda. A gramática é muitas vezes ditadora na forma como devemos articular um discurso. Não obstante, é através da gramática que criamos entendimento e lugares de comunicação, caso contrário, cada pessoa falaria a sua língua. No entanto, esses lugares e entendimentos têm que estar em permanente atualização, ao invés, a língua deixa de ser um instrumento que executa (ou dá lugar) a discursos para passar a ser um instrumento que os condensa e fossiliza. Esta performance demonstra muito bem o modo como a língua foi, é e pode ser instrumentalizada. A língua vive na praça pública, nasce nela e transforma-se com ela. A língua que nasce nas academias ou nas esferas de poder, que foi e continua sendo aqui e ali aplicada de forma violenta, perde constantemente face à linguagem que se cria na rua, no espaço público. Quem fala a língua é quem a define e o que a linguagem de quem fala define, são convenções linguísticas. Em todos os países isto acontece, as instituições nunca são capazes de estagnar a forma como se fala a língua numa determinada geografia.

O texto desta peça expõe a complexidade da língua portuguesa sublinhando o contexto histórico, político e social de quem a fala. As diferenças entre estas pessoas são colossais, em certos casos imagino que sejam tão grandes que a comunicação simplesmente não acontece. Durante a performance há um jogo constante com as pronúncias e os sotaques da língua. Na maior parte das vezes de forma provocatória e cómica. Cada uma das performers faz uma conferência que encerra em si um ponto de vista, um questionamento, uma afirmação pessoal das suas subjetividades. Além das conferências, assistimos a anúncios comerciais e um talk show. O sentido de humor está subjacente ao longo de toda a ação, mas não sempre com a mesma intensidade. Esta característica exalta e dá mais força ao que está a ser dito porque, no meu entender, a sátira e o humor estabelecem uma relação de proximidade que facilita a reflexão e o sentido crítico daquilo que está a ser dito por parte de quem assiste. A continuidade cénica desta narrativa não é linear, é uma encruzilhada de várias histórias, sensibilidades e maneiras de ver o mundo. A construção de uma linguagem inclusiva não binária é porventura a mudança aqui exposta mais difícil te atingir nas sociedades. Muita gente que se diz progressista e que até foi favorável a mudanças como o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou o aborto, quando confrontadas com este tema, evitam constantemente a discussão. É uma questão que facilmente é considerada não prioritária, apelidada de ridícula ou caprichosa. Quem não a apelida desta maneira é quem não entra nas representações, quem esculachamos e violentamos diariamente. São todes a quem colocamos o manto da invisibilidade. Esta peça não pretende ser um momento ativista panfletário onde o público repete palavras de ordem e sonhamos em conjunto por um mundo melhor. A sensibilidade do discurso não é lamechas, mas sim ousada e vulnerável. Outra Língua afirma a vulnerabilidade como lugar de beleza e alento: ao olharmos para as vulnerabilidades da língua vemos a potência das mudanças que daí poderiam nascer.

Outra Língua decorreu de 26 de maio a 12 de junho no Teatro Nacional D.Maria II.

Rodrigo Fonseca (1995, Sintra). Estudou na António Arroio, é licenciado em História da Arte e mestre em Artes Cénicas pela FCSH/UNL. Foi cofundador da editora CusCus Discus e do festival Dia Aberto às Artes. Além da Revista Umbigo, faz crítica musical na plataforma Rimas e Batidas. É técnico de som especializado em concertos e espectáculos e artista residente da associação cultural DARC.

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