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Cruzar diálogos

Na sinopse de apresentação da exposição Faro-Oeste, de Pauliana Valente Pimentel, explica-se que aquele conjunto de mais de trinta fotografias (de um grupo ainda maior, já que as imagens expostas em Lagos são em número diferente das que se mostraram aquando da primeira exibição, no Museu Municipal de Faro entre novembro de 2021 e janeiro de 2022) resulta de temporadas que a fotógrafa passou em acampamentos de famílias ciganas algarvias, durante o ano de 2019. Ali retratou o quotidiano das pessoas, o exterior e o interior das habitações, animais domésticos, os espaços em volta – mais ou menos distantes. As zonas que Pauliana Valente Pimentel cobriu foram desde Castro Marim e Vila Real de Santo António às zonas de Faro, Boliqueime e Loulé: da raia para Ocidente, um Faro-Oeste que explicitamente acena aos ambientes espaciais do farwest que o imaginário americano povoou de andarilhos, invasões, desentendimentos, confrontos e nomes que trazem consigo segredos: Cerro do Bruxo, Horta da Areia, Alto do Relógio, Monte João Preto.

“As comunidades ciganas em Portugal”, prossegue a apresentação, da responsabilidade da associação Casa Branca, que encomendou as obras e que remete para um relatório do Conselho da Europa divulgado no começo de 2020, “continuam a ser discriminadas e a viver à margem da sociedade, com condições de habitação pobres, níveis de escolaridade baixos e taxas de desemprego altas”. Um dos intuitos da exposição foi, portanto, um alerta social: dar a conhecer as comunidades e as suas vivências, fazer aproximar as imagens de um público em grande medida desconhecedor, não familiarizado com os hábitos de um povo que coabita o mesmo espaço geográfico; tentar, através dessa aproximação matizar, ou eliminar mesmo o receio, a tão tristemente frequente propensão para a injustiça e para o erro de juízos de valor opressivos. Pretendeu-se “mostrar o dia a dia destas famílias, dando ênfase às suas tradições, com o intuito de combater preconceitos e estereótipos racistas e xenófobos de que são constantemente alvo.”

Cada uma das fotografias expostas cumpre uma dupla função, em cada uma subsiste um carácter duplo: por um lado, o desígnio social, que se reflete em todo o ciclo que constituiu o processo desde a abordagem da artista às comunidades, passando pelos rituais de permissão, pelo convívio, pela recolha cúmplice das imagens, até à sua divulgação num museu, num centro cultural, ou numa galeria de arte. Pressupõe-se, aqui, um processo de dignificação – estes lugares da arte, os lugares das musas, são retiros de respeito, de abolição de diferenças, são altares em que se suspendem as atitudes de desconhecimento e recusa de modo a anulá-las. Como tal, habitar esses espaços é integrar a possibilidade de compreensão, de um entendimento que não apenas se reflete sobre as comunidades representada nas fotografias, mas beneficia, porque alarga a perceção e o discernimento, as comunidades não ciganas, aquelas que em maioria representam os visitantes. Não sendo espaços de neutralidade (porque o sistema em que se organizam é sobretudo não cigano), devem oferecer-se como campos de imparcialidade – sem que o sejam de indiferença.

Por outro lado, e paralelamente a esse carácter ou ambição de familiaridade e harmonia social, a presentificação da comunidade cigana que as fotografias permitem ao espectador não cigano jamais elide, jamais obscurece, jamais faz desaparecer uma preocupação estética que, essa sim, é – como está certo que seja – autónoma e, nesse sentido, indiferente ao tópico fotografado. Talvez seja isso mesmo que faz atribuir aos lugares das musas o seu traço de altar, a sua aura de templo onde se suspendem os valores e os hábitos fora deles. A arte pode não se sobrepor aos temas que exibe – mas não deve, do mesmo modo, subjugar-se, nem se deixar encobrir por eles. O cuidado estético é uma cura, a evidência e o respeito por um modo de apresentar, uma modalidade de incentivo ao diálogo que implica o artista e o resto do mundo – e em que um e outro permanentemente se substituem nos papeis de criador e coisa criada. O investimento nesta cura artística está para lá, para além de si mesmo, é um acrescento aos propósitos sociais da artista. Pense-se num exemplo em concreto: dificilmente algumas das fotografias de Faro-Oeste poderia confundir-se com a componente de uma fotorreportagem: há uma encenação (independentemente de, no momento da captação, ela se ter configurado; independentemente de haver tomadas resultantes daquilo a que se chama, por facilidade, acaso, sorte, ou intenção consciente de não interferir na disposição do que se pretende mostrar) cuja prova constitui o mais primordial gesto da fotografia, o enquadramento. Mas outros aspectos materiais a ilustram, decorrentes da resolução da artista, como a captação de certos instantes, a carga de uma certa simbologia, que convidam à atitude crítica – a imagem de um dos anciãos da comunidade, por exemplo, que parece distraído a olhar para a televisão desligada, e ostensivamente vira as costas para o aparelho apagado: a pergunta crítica a formular poderia ser “Que tipo de convivência pode ter o responsável social de uma comunidade acima de tudo nómada com o símbolo maior do sedentarismo cultural?” O propósito dessa imagem, então, não é a mera documentação de um elemento do grupo, mas a reflexão profunda sobre ele, sobre a comunidade e sobre outros, que, por regra, estão fora dela e o excluem.

É também o traço essencial da fotografia que configura o posicionamento estético, quando o coloca lado a lado com o exercício social, com a sã prática da cidadania. Mas esse traço definidor é reforçado por decisões e por materialidades que compõem todo o corpo expositivo. Desde logo, a opção por fazer imprimir as fotografias em tecido impermeável, transparente e muito flexível. A artista insiste mesmo nestas qualidades para que a experiência do visitante seja o mais imersiva possível. Do mesmo modo, Pauliana Pimentel tirou o máximo partido das potencialidades do espaço específico da galeria do Centro Cultural de Lagos: aproveitando o pilar a meio da sala, este passa a funcionar como eixo das cordas que nele convergem (ou que dele partem) para construir o estendal em que se dispõem os panos-fotografias. Ao entrar, o visitante encena a entrada num acampamento cigano, lugares de onde raramente estão ausentes os estendais de secagem da roupa. Entrar na galeria-acampamento significa adentrar uma intimidade que, observada cada uma das imagens, se aprofunda: vê-se – como que se habita – espaços de cozinhar, de dormir, de conviver, de meditar.

As cordas destes estendais múltiplos, combinadas com o pilar da galeria, propõem a leitura do cruzamento de culturas; os triângulos formados pela combinação das cordas têm a forma simbólica das tendas-habitação. O estendal é, aliás, um dos traços de comunhão entre comunidades ciganas e não ciganas, dada a sua expansão por todo o Sul da Europa; no acampamento cigano, o estendal é móvel, mas nas estáticas varandas dos prédios de uma cidade não esconde o quanto simboliza a liberdade, o movimento ditado pela circulação do ar, pela independência indómita do vento. O estendal é um tópico de vizinhança entre comunidades não ciganas e comunidades ciganas, é um leitmotiv – de forma – de aproximação.

Outro exemplo revelador do necessário impositivo estético é o modo como a artista valoriza os raccords, inventando diálogos entre elementos distintos por vezes dentro de uma única fotografia. Podem ser – tais diálogos – suscitados por um ritmo de repetição de cores, como se se tratasse de uma rima de tons: veja-se a fotografia na qual se mostra um quadro a representar flores, e em que a cor das flores do quadro sublinha o azul de uma carreta de cabo elétrico, no chão. O elemento decorativo do quadro e o elemento pragmático e utilitário da carreta conversam entre si, relacionam-se nesta familiaridade consolidada pela vizinhança cromática.

A experiência de adentrar a galeria do estendal das fotografias de Pauliana Valente Pimentel suscita, por fim, um outro nível de reflexão – que pode aplicar-se quer ao intuito social, quer à dimensão estética que identifiquei: a transparência do tecido e a maneira como foram impressas as fotos faz com que a mesma imagem possa ser vista de um lado e do outro sem que tenha de se estabelecer qual é o avesso e qual o direito. Por outras palavras, esta característica material dificulta a fixidez do sentido, do que se entende por norma e do que se entende por aquilo que sai da norma (aliás, o próprio facto de a galeria ter duas entradas impede essa fixidez). Na deambulação pelo meio do estendal, cujas peças tem de afastar com as mãos para poder avançar (a artista incita a esse toque), o visitante aceita a indeterminação sobre se o que vê de imediato é o direito da imagem ou o seu avesso, o avesso ou o seu direito. Como num diálogo verdadeiro, com os conversadores situados no mesmo plano, um plano não hierarquizado da conversa – aquele em que, na verdade, é possível sentarmo-nos a trocar ideias sobre os assuntos.

A exposição Faro-Oeste, de Pauliana Valente Pimentel, pode ser vista até 2 de julho de 2022na sala de exposições 1 do Centro Cultural de Lagos.

É comissionada pelo Festival Verão Azul, produzida pela CasaBranca AC (estrutura financiada pela República Portuguesa – Cultura / Direção-Geral das Artes), com a curadoria de Ana Borralho, João Galante e Catarina Saraiva.

Apoio financeiro: Câmara Municipal de Lagos / Centro Cultural de Lagos.

Co-produção: Teatro das Figuras, CineTeatro Louletano / Câmara Municipal de Loulé.

Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.

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