Limiar da Trilogia – Ato 2/3. Manicómio na Fidelidade Arte
14 horas a dormir. Corpo deitado, corpo prostrado.
1 hora com o olhar no horizonte, sem quê nem porquê. Olhos que não veem, voltados para dentro.
1 hora a comer, ou a fingir que se come.
8 horas a suspirar, a ansiar pelo fim do dia, pelas 14 horas a dormir, com o corpo deitado e o corpo prostrado, mais a hora com o olhar no horizonte, sem quê nem porquê, e a outra a comer, ou fingir que se come.
Os outros festejam as tuas vitórias e conquistas, as alegadas vitórias e conquistas; os outros choram por ti, a apatia e o sono perpétuo a que votas o espírito; os outros marcam-te uma consulta, porque não estás bem, não estás normal – e o que é estar bem e o que é estar normal e que importa o mundo, se tudo é triste e tudo é negro e tudo é profundamente profundo, exasperantemente exasperante, e tudo cava uma cicatriz que não se cose, um abismo que não se salta.
30 minutos de psicoterapia semanal durante meses. Cada sessão a 90€. Médico de referência, credenciado, experiente, aconselhado por esta e por aquela.
75mg de Venlafaxina, Sedoxil e 1 Victan em S.O.S. Para trás fica o anódino Valdispert.
A voz falha, a cabeça não processa o horizonte que não se vê, o alarme alheio, a vida que há que viver – porque a vida é uma bênção, uma dádiva divina, e o passe do autocarro tem que se validar e o Técnico é no cimo da Alameda e tens que te lembrar de ir à casa de banho e tens que te lembrar que tens de comer, socializar, estar presente.
A voz falha, porque a cabeça não processa. Mas as mãos erguem-se para riscar a folha em branco, esculpir o bloco de argila amorfo, pintar um sentido que se enforma numa expressão não-verbal, numa linguagem que é mais corpo e silêncio, menos som e razão.
Limiar da Trilogia é um ciclo expositivo que deixa a arte ser o que é: objeto de uma expressão paralinguística, feita de medos, frustrações, hesitações, doenças, manias, mas também conquistas, superações, cuidados e curas. É um projeto que transcende rótulos – Arte Bruta e estética da marginalidade são termos que se tornam pejorativos e excludentes. É simplesmente um projeto artístico, com todo o todo o potencial da arte; é a arte que se verte das mãos das almas desassossegadas, inquietas e enfermas, para cruzar e habitar o limiar da transgressão, da aceitação da anormalidade e da negação da normalidade, criando novos nexos dentro do tratamento psiquiátrico e novos nexos para a vida.
É essa, afinal, a missão do Manicómio – um projeto que herda a experiência no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa para combater o estigma das doenças mentais, integrando posteriormente os seus artistas dentro de uma comunidade e de um sistema que se julgavam inclusivos. Pois que este sistema não está alheado da sociedade moderna reducionista, do psicologismo positivista, da necessidade taxonómica compulsiva de tudo querer classificar e nomear. E este sistema é feito dos mesmos indivíduos que habitam as outras esferas sociais e deles comunga.
Há, de facto, preconceitos no mundo da arte, como Lorenza Böttner nos mostrou com a sua vida e obra – ela, que aprendeu a dominar o desenho e a pintura com os pés e a boca e reclamou um lugar na história da arte contemporânea, junto de qualquer outro artista de corpo inteiro ou de faculdades plenas. Böttner recusou-se determinantemente a ser associada a mais uma menina Contergan, da arte feita em regime de ATL, e, tal como os artistas residentes no Manicómio, assumiu-se como uma artista plena. Ponto.
Todavia, é curioso notar que paralelamente a esse preconceito há também uma romantização da doença mental, que é, em tudo, falsa, estetizada, construída e nefasta: o artista pragado de demónios, o artista patologicamente incompreendido, louco, passado e, portanto, genial. Esse artista, na maioria dos casos, não quer ser génio, não quer ser indivíduo isolado e alienado do mundo; quer antes pertencer, coabitar, partilhar e ser ouvido para lá da aparente desordem discursiva.
O Manicómio mostra-nos como a diversidade funcional e a neurodivergência não pode significar uma lacuna, uma rotulagem. Do ponto de vista epistemológico, é bem possível que a diversidade funcional e a neurodivergência possam significar antes formas de resistência à normalização da sociedade capitalista, hiperprodutiva, patriarcal e hétero-normativa. Entre o escapismo e a superação, o ativismo e a integração, este é um projeto que ajuda na ressignificação da vida, da doença e da arte – um lugar que se aprende a construir, a residir, um lar onde residem todos os complexos identitários, todos os fantasmas e monstros com os quais aprendemos a coexistir.
Se no primeiro ato do ciclo Limiar da Trilogia havia a preocupação de dar rosto aos seres invisíveis que povoavam a mente dos artistas – os monstros tenebrosos e adoráveis de Anabela Soares, os sujeitos incompletos de Micaela Fikoff e a repetição indecisa do quotidiano de Pedro Ventura –, entre a obsessão e a compulsão, no segundo ato parece haver a vontade de dar luz aos ciclos da vida.
Bráulio Moreira dá-nos a ver – ou a rever – a inocência da infância, aquele período mágico em que os seres parecem ser infinitos, ilimitados, numa perpétua potência em devir. Os pássaros levitam com a música de fundo – o efeito é melancólico e é belo, toca a ferida da inexorabilidade do tempo e liberta-nos simultaneamente dele.
Carolina Carvalhal mostra-nos a ânsia da maternidade, o que tem de telúrico e fantástico. Tudo é deslumbrante e saturado e vivido em redobrado nestas mulheres: é a vida que jorra dos seios, que escorre dos olhos, que se anuncia no ventre, entre cicatrizes, angústias, ansiedades, depressões, culpas – mas também, ou sobretudo, esperança.
Cláudia R. Sampaio concebe uma série de peças cerâmicas que se assemelham a urnas. Nelas pinta a sua vida, os seus traumas, medos e faz delas confidente. Lemos excertos de textos ou poemas, prescrições médicas; maravilhamo-nos na riqueza de cores, de paisagens e desenhos. Estes são objetos pictóricos e escultóricos, interior e exterior, imensos na quantidade e, como tal, com muito para encher e muitas vidas por acolher.
Há algo de reconciliador em Limiar da Trilogia – Ato 2/3 e de profundamente espiritual e terapêutico – uma brisa, um passeio descomprometido, mas interessado, pela vida, sem esconder agruras ou ocultar a verdade. No fundo, Limiar da Trilogia devolve-nos o que muita da arte contemporânea parece, por vezes, esquecer: a arte como possibilidade plástica da vida interior, ou a arte como artifício que materializa o que escapa ao visível, à lógica, ao olho redutor.
Coordenado por Sandro Resende, Limiar da Trilogia – Ato 2/3 é um projeto do Manicómio, em exposição na Fidelidade Arte, em Lisboa, até 15 de julho.