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Pavilhões Nacionais e Pavilhão Nacional na Biennalle de Veneza

O percurso da minha visita à Biennale de Veneza começou pelos Giardini della Biennale. É neste parque público que se concentram na sua maioria os Pavilhões Nacionais e uma das exposições coletivas (onde recordo em The Milk of Dreams: o mesmo, diferente ). Tal como na exposição organizada por Cecilia Alemani, e apesar da seleção e concretização dos projetos nacionais terem uma linha individual de valores e correntes estéticas, formaram, no seu conjunto, uma revisão estrutural sobre o atual estado do mundo. Esta leitura, pode claro, variar conforme estados de espírito, meteorologia, sentido crítico e até mesmo companhias. A minha, vai de encontro a um sentido coletivo de quebra, de avaliação do sistema e da consequente sugestão de novas fronteiras (simbólicas, geográficas, políticas, culturais…).

A palavra fronteiras também é relevante para os próximos parágrafos, e talvez seja ela uma questão: Fará ainda sentido uma organização nacional em que cada artista escolhido representa o seu país? E se o artista for russo? O seu pavilhão estava fechado por razões renúncia própria da equipa curatorial, mas deverá o sistema político de cada país, influenciar a identidade artística individual? Ou mesmo até no caso português…. Serão ainda pavilhões nacionais sistema sustentável?

Ao entrar no Giardini, o primeiro pavilhão que se encontra encontro Correction do artista Ignasi Abalí. Esta proposta arquitetónica demonstra um erro na orientação do pavilhão em relação aos restantes pavilhões, corrigindo-o acrescentos e interceções às paredes originais. Se mantiver esta linha de intervenção da arqueologia da arquitetura, adiciono o pavilhão Alemão com a intervenção de Maria Eichhorn que, de forma literal, escavou e revelou todas as camadas estruturais do espaço nacional, que foi em tempos dividido entre a Bavária e extensões realizadas pelo partido nazi em 1938. Nas paredes brancas, inscreve a tinta também branca, explicações técnicas em Inglês, Italiano e Alemão. Numa primeira impressão, encontrar pavilhões vazios e da mesma forma, assumindo-os como o seu próprio objeto expositivo, deixam em primeiro plano, as falhas e imperfeições, contrária ao próprio estatuto de harmonia e pureza associada à Biennale de Veneza. Entre este sistema de separação, a existência de impurezas revela de forma muito clara que esta organização tem nas suas próprias fundações um sistema que poderá (ou estará já) ser repensado. Tanto Abalí como Eichhorn, contam com o vazio para atuar sobre silêncio da história e fazer-se lembrar sobre que valores simbólicos, geográficos, políticos e culturais foram construídos.

Passando para o trabalho do artista Francis Alÿs no pavilhão belga e Zineb Sedira no pavilhão francês a comunhão de diferentes pontos de vista com uma maior abertura de aceitação, o primeiro por ter em primeiro plano a documentação do ato de brincar de crianças de todo o mundo (Child Games) e o segundo da construção e produção de um set de cinema e a sua própria exibição (Les rêves nont pas de titre). A preocupação de revelar uma visão alargada de linguagens universais, como são as brincadeiras das crianças com bolas, dançar num círculo e lançar um papagaio ou a criação de narrativas inventadas através do cinema, e da sua construção de personagens que por sua vez potenciam outros tipos de discurso. Pensando ainda sobre a restruturação e a pergunta sobre o que deve ser uma bienal. Poderia ser um sítio para crianças brincarem? Ou para se construir um cenário de um filme de personagens não normativas? Neste par, posso também traçar o lugar comum sobre uma ideia de divisões, refletem sobre as linhas sistémicas que nos dividem e encaixam em gavetas com o nome do nosso país. Preocupadas ainda com um certo sentido de cultura, língua e comportamentos ditos nacionais.

Esta visão torna-se mais rígida no pavilhão dinamarquês e no português onde se especulam diferentes hipóteses sobre o futuro do nosso mundo, já através de estéticas de ficção científica pós-apocalipse. Primeiro, o pavilhão conceptualizado por Uffe Isolotto, We Walked the Earth é uma experiência inesperada pela sua crueza e estranhamento das figuras que o ocupam. Ao entrar no espaço, coberto por feno, descubro dois corpos hiper-realistas de centauros estáticos, um deitado, outro enforcado. Este cenário grotesco de violência silenciosa apela, a quem o visita, a uma certa culpa de ações do presente (e talvez do passado), irremediável agora. A incerteza do que aconteceu ao seu mundo converge na esperança e tragédia futura dos nossos corpos como matéria da história. Por sua vez, Pedro Neves Marques retrata, esta mesma possibilidade, crítica e fortemente metafórica com Vampires in Space. E, ao contrário de todos os outros pavilhões até agora referidos, o português não estava inserido num conjunto como os do Giardini ou os do Arsenal. Localizado no centro da cidade, o Palácio Franchetti decorado ao estilo veneziano, com frescos, mármores e ornatos por todas as paredes, traz uma certa novidade em relação à concentração dos pavilhões e libertação do espaço urbano sendo uma visita mais natural e orgânica de quem simplesmente visita Veneza.

Vampires in Space, simula uma nave espacial, dividida pelas salas de um dos pisos do palácio: um vídeo por sala, no total três vídeos e um conjunto de poemas. A inclusão do visitante no espaço é imediata, dada à quase escuridão das salas, todos estão num igual estado de anonimato, tirando breves momentos quando a projeção ilumina o rosto. Ao entrar, fiz uma breve ronda à instalação, as salas estavam cheias e as cadeiras na sua maioria ocupadas por pessoas imóveis, concentradas nos vídeos. Esta observação exterior de corpos com os quais partilhava o espaço, foi em parte uma preparação para a própria matéria de Neves Marques: humanos sem uma identidade certa, juntos num espaço estranho de ficção, no cosmos onde a noção de fronteiras também se esbate. Os vampiros representam o lugar simbólico dos seres marginais, sem género, que vivem em grupo (em famílias não nucleares) e procuram a sobrevivência na vida eterna. Uma nave espacial, é normalmente associada à esterilidade, à limpeza, à rigidez, à rotina, contudo, a nave dos vampiros, era um lugar de cunho pessoal, quente e confortável onde conversavam e trocavam afetos. A experiência no pavilhão é completa, dinâmica na sua utilização do espaço e de uma construção conceptual delicada, mas surpreendente.

Este conjunto de pavilhões referidos e muitos outros com o americano de Simone Leigh e o inglês de Sonia Boyce, convergem naturalmente para a ideia única de mudança estrutural, em todos os seus sentidos e concretizações. A Biennale é um lugar de muitas camadas sociais, políticas, económicas e artísticas. Os artistas falaram, e no seu conjunto há uma linguagem comum que traz uma reflexão maior sobre o programa sobre o qual se sustenta toda a estrutura que ocupa Veneza duas vezes por ano.

A Biennale de Veneza pode ser visitada até ao dia 27 de novembro de 2022.

Licenciada em Artes e Humanidades (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2018), é programadora cultural e curadora independente de arte contemporânea. Em paralelo com a frequência do Mestrado em Fine Arts Curating (Goldsmiths, University of London), dedica-se à investigação de espaços expositivos não convencionais e metodologias curatoriais alternativas. (retrato por Hugo Cubo, 2020)

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