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Nos intervalos, testar os limites

Sucede, em vários momentos da visita à exposição de Gabriela Albergaria no Museu Municipal de Tavira (Palácio da Galeria), a experiência de quem visualiza, sente – tateia – os limites. Sejam as linhas que definem um objeto, as fronteiras – obstáculos, mas igualmente moldura – de um espaço, os limites mesmos do ser que deambula, pelo espaço, entre objetos. O enquadramento espacial que condiciona esta perceção está confinado no interior das salas do Palácio da Galeria. Percebe-se desde logo um limite inicial, que se terá colocado ao curador (Delfim Sardo) e à artista (Gabriela Albergaria), na decisão de dispor as peças da exposição antológica. Uma tal mostra, de obras que vão desde a dimensão mínima ou quase impercetível (como o canto de chão, Fungi do not have stomachs! [2018-2019]) até aos ramos expandidos de uma acácia, exige a adaptação ao lugar, a medição, a observação das fronteiras, a contenção dentro de um espaço.

Tal como em muitos outros exemplos no mundo atual da arte, torna-se difícil destrinçar o labor dos artistas do trabalho dos curadores e de quem gere os lugares onde se mostra a arte. (Neste sentido, uma galeria exígua num dos bairros mais energicamente artísticos de Manhattan, hoje em dia, pode ser tão desafiante como o museu de um município de província em Portugal – o esforço e a persistência para exibir ao público de Tavira uma antológica de Gabriela Albergaria é por isso, desde logo, louvável.)

Entre outubro de 2020 e junho de 2021, mostrou-se na Culturgest, em Lisboa, a exposição Nature Abhors a Straight Line / A Natureza Detesta Linhas Retas, primeira mostra antológica da artista nascida em Vale de Cambra em 1965. Depois da capital, é a vez de o Algarve conhecer, em Tavira, desde 14 de maio até ao começo de outubro próximo, exemplos de obras-chave do percurso de Albergaria nos seus mais recentes anos. Delfim Sardo imaginou, com a artista, a ocupação das salas da Culturgest e o seu trânsito para o museu tavirense.

Todas as peças da exposição são site-specific, realizadas para aquele lugar específico da exposição, mais do que apenas transportadas e enquadradas entre as novas paredes. Aquela que mais imediata e inequivocamente assim se entende é Equador, um círculo ocre desenhado, com diferentes densidades de cor, a tinta acrílica e lápis de cor numa parede, trespassado por treze linhas que convergem num ponto só aparentemente central e cujo cruzamento com o círculo termina em pequenos prismas de bronze – são divisões do planeta que o ocre mais faz parecer com o sol, equadores só de nome, ou nome em irónica e brônzea fixação. Mas qualquer outra peça na exposição, mesmo se não concretizada ali, vive do diálogo com as paredes, com o vislumbre das salas contíguas, da paisagem exterior, em que o Gilão, modorrento, exibe a palidez da calima.

O trabalho de Albergaria tem vindo a crescer numa pesquisa centrada nas ideias de Natureza – sobretudo, no sentido do conceito que Natureza vem tendo, no Ocidente, desde finais do século XVIII. Talvez seja daí que surge, também, como que o gesto de empurrar os limites da linguagem, das línguas, da taxonomia em relação com os objetos. Trata-se de ajustar às várias abordagens filosóficas da linguagem a própria expressão artística: num políptico como Trianon (2010-2020), cada um dos cinco elementos é composto por um díptico; por sua vez, cada um dos dois componentes dos dípticos é constituído por seis placas de madeira de Pau-Marfim, com impressões “a jato de tinta sobre papel de lã”. As seis placas do lado esquerdo do díptico compõem a imagem de uma árvore (em contexto, isto é, com a sugestão de um conjunto de árvores); as do lado direito, que recebem na margem esquerda a continuação das imagens à sua esquerda – transposição da fronteira imposta pela dimensão e pela forma da placa –, incluem a designação comum e o nome latino na classificação taxonómica de Lineu (ambos na placa cimeira), assim como um texto breve (iniciado na placa superior) sobre as características e a utilização que o ser humano faz da madeira que compõe e se extrai de cada uma das árvores. Mas são limites linguísticos que aqui se movimentam e ultrapassam: para cada uma destas árvores, o texto é redigido numa língua (Pau Ferro – portuguesa; Araribá – espanhola; Pau Brasil – inglesa; Jatobá – francesa; e Jequitibá – portuguesa). É o português (a língua portuguesa) que delimita as fronteiras taxonómicas, colocado como se apresenta nos extremos da composição e na designação comum. Mas, por assim dizer, habita o seu interior toda a sorte de diferenças, de culturas, de remissões históricas que passam por uma diluição das identidades, antes de mais fixadas pela língua.

Esta é uma das peças em que mais evidentemente se oferece um dos confrontos produtivos da obra de Gabriela Albergaria: o de elementos naturais com os de carácter civilizacional. Aqueles que porventura exibem de modo mais cru, mais imediato, essa confrontação são os que, ao invés de sugerirem a representação da Natureza (como na composição de painéis que referi, ou como em momentos da série Landscape in Repair, em que várias abordagens, da aguarela à fotografia, trazem para o espaço da exposição uma visão da artista sobre a Natureza fora dali), presentificam elementos dessa Natureza, sempre modificados na sua natureza: seja uma acácia, fragmentada e recomposta através de parafusos e outros objetos metálicos, sejam pequenos troncos de videira cujos topos se destacam, a tinta acrílica, sugerindo onze pequenos paus de fósforo prestes a transformar-se em fogo (Onze Enxertos para Castas Alentejanas), ou o tronco de um velho eucalipto rasgado em duas secções entre as quais se entala uma “viga de cedro” – entre a viga e cada uma das metades do tronco há intervalos, o espaço de transparência que o olhar do visitante é convidado a atravessar, de onde consegue perceber a morte e a imponência da árvore, o vazio e a presença, a finitude e o infinito.

A Natureza abomina linhas retas (expressão que Albergaria toma de empréstimo ao paisagista inglês do século XVIII, William Kent) não apenas porque a sua existência se constrói no aparente caos das curvas, das arestas, do cruzamento entre matéria, ausência, linguagem e interrogação, mas porque a retidão das linhas (as linhas) simboliza a fronteira, o limite, o intransponível: o antinatural.

A exposição de Gabriela Albergaria Nature Abhors a Straight Line / A Natureza Detesta Linhas Retas, com curadoria de Delfim Sardo, está aberta ao público no Palácio da Galeria, em Tavira, até 8 de outubro de 2022.

Ana Isabel Soares (n. 1970) é doutorada em Teoria da Literatura (FLULisboa, 2003) e ensina desde 1996 na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (UAlgarve). Integrou a equipa de fundadores da Associação de Investigadores da Imagem em Movimento. Interessa-se por literatura, por artes plásticas e por cinema. Escreve, traduz e publica em revistas portuguesas e internacionais. É membro do Centro de Investigação em Artes e Comunicação.

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