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É o cenário que se move / It’s the scenery that moves de Luísa Jacinto e Isa Melsheimer na Brotéria

A luz do sol, incidindo nos olhos fechados, forma manchas fugidias, impossíveis de sustentar. O cego que tateia, procurando ver. O corpo que cai pesado, querendo deixar-se adormecer. Ambos vão resistindo, cansando-se.

É o cenário que se move / It’s the scenery that moves, a mais recente exposição do centro cultural Brotéria, composta através de um convite da artista Luísa Jacinto a Isa Melsheimer no sentido de desenvolverem uma exposição conjunta, parece operar, sempre, neste limite de dormência: há uma força, gravidade, que quer ceder. A primeira sala da galeria encontra-se quase liberta: a luz limpa, aberta, ilumina as poucas obras afastadas, algumas na parede, outras pendendo do teto, suspensas, levando leveza ao espaço. Compreendem-se numa mesma gama cromática, tons brancos, bege, abatidos, dialogando com o chão, antigo, do Palácio dos Condes de Tomar.

O ponto de partida da exposição são duas pinturas de Isa Melsheimer, de título literal: Nr. 476 e Nr. 475 – duas ruas desertas, entre edifícios de cal e betão. Numa delas, situam-se postes de eletricidade de onde pendem fitas decorativas, coloridas, enunciadoras de um arraial popular. Estas pinturas foram concebidas no contexto de uma residência da artista no Porto, onde procurou explorar as habitações do Bairro da Bouça, arquitetadas por Álvaro Siza Vieira, e construídas no âmbito do projeto SAAL no pós 25 de abril. As repercussões desta viagem são evidentes no trabalho mostrado nesta exposição. Melsheimer apropria-se da efemeridade das fitas decorativas aqui pintadas, para as converter em material escultórico, através das intervenções no espaço em Feston, onde em vez de aglomerações de papel colorido, vemos pedaços de cerâmica vidrada, adquirindo várias formas – quadrados, triângulos, moldes circulares. Numa das salas, o festão finalmente cede, caindo no chão e, agora, assemelha-se a uma serpente. Já em White, feito com um semelhante material cerâmico, aqui convertido a ladrilhos quadrados, vemos um quase azulejo, percorrendo tons bege. São notórios o peso e tactilidade destas obras, pendendo de um arame que as unifica. Aliás, tudo aqui é táctil, desde a escultura ao têxtil, e o que não é parece dispor-se num efeito totalmente contrário, etéreo.

Vejamos agora a intervenção de Luísa Jacinto que dá nome à exposição, It’s the scenery that moves, uma grande pintura sobre tela, aqui sem a base da moldura, convertida a apenas tecido, onde se espalham manchas, dobras, como o denunciar de um tempo passado, de cores esbatidas, à beira do esmorecimento, como um ser sonâmbulo.

As obras de Luísa Jacinto destacam-se pela cor, sempre em materialidades possibilitadoras que parecem renunciar a sua condição. Thirst, já no segundo piso da galeria, mostra-nos um triângulo intenso, pintado numa gradação de roxo a vermelho, espelhando a intensidade do magma vulcânico; no entanto, a obra é pintada sobre um poliéster finíssimo, contraditório com o peso que aparenta, e onde padrões moiré se evidenciam ainda, nos interstícios da sua menos óbvia translucidez. Já em Breath 2, manchas indefinidas parecem fazer um raio x da estrutura da tela, sugerindo a silhueta de uma janela, onde se impõe, sobreposta, uma outra mancha, de cor mais forte, intensa, parecendo sugerir uma cortina. Numa tensão entre transparência e opacidade, parece esclarecer-nos que, nas obras de Luísa Jacinto, a cor tapa, omite, não permite ver.

Esse estado translúcido, hipnagógico, a margem entre o claro e o opaco, quase etéreo, invisível, nunca estático, é a chave desta exposição, onde as diferentes obras se encontram. Mesmo a sobriedade cromática de Melsheimer se apropria dessa radicalidade, essa dificuldade de visão no seu Tuch, letras brancas sobre fundo branco, onde em rasuras e tessituras têxteis se fazem representar figuras, uma delas aparentando alguém em cima de um cavalo, pisando um dragão: lembra-nos a iconografia de São Miguel Arcanjo. As frases inscritas na obra parecem anunciar uma relacionada esperança: “What will be the legacy of this proletarian utopia?” A obra une-se aos festões decorativos, à apreensão sociopolítica das suas primeiras pinturas aqui dispostas. Também mitológica, violenta, dialogante, é a intervenção que faz nas estátuas da escadaria do Palácio, There is plenty more fish in the sea, onde a sua corrente de festões abraça um leão e um dragão que o tenta sufocar, num combate entre o bem e o mal. Sublinha a dramática cenografia deste programa decorativo, cobrindo um dos olhos do leão, cerrando-o a uma possibilidade de escape, resistência. Fá-lo cair, num ato posterior que não vemos, pessimista, tal como o Everything de Luísa Jacinto onde alguém, num espaço amplo, brilhante como o de uma igreja, olha para o lado (como nós visitantes ao observarmos a própria obra) para um lugar negro, cerrado. A claridade não atrai. É aí que cerramos os olhos e vemos manchas, as de Apnea, onde quase tecidos, à beira da transparência, emitem padrões coloridos, sempre impossíveis de alcançar. Os tons esmorecem. A exposição mostrou-se sóbria, a curadoria cuidadosa. Estamos calmos. Pode ser que, finalmente, adormeçamos, deixando o cenário mover-se por nós.

É o cenário que se move / It’s the scenery that moves está em exposição na Brotéria até ao dia 2 de julho.

Miguel Pinto (Lisboa, 2000) frequentou a licenciatura em História da Arte pela NOVA/FCSH, através da qual veio a realizar um estágio no Museu Nacional do Azulejo. Participou no projeto de investigação VESTE – Vestir a corte: traje, género e identidade(s), alojado pelo Centro de Humanidades da mesma instituição. Criou e gere o projeto a Parte da Arte, que pretende divulgar e investigar o panorama artístico em Portugal através de vídeo-ensaios explicativos.

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