Top

A Malha de Isaque Pinheiro na fachada da .insofar

No bairro histórico de Marvila, nasceu em setembro de 2021 a galeria .insofar, manifestando o desejo de reformular as correlações entre artista, obra e público. No passado dia 14 de maio, foi apresentada a primeira edição do projeto Fachada, com direção artística de Ines Valle, em que uma vez por ano será convidado um artista para intervir na fachada da galeria. Para além de um artista, será também convidado um profissional da esfera das artes para desenvolver uma reflexão sobre a obra apresentada.

Isaque Pinheiro, é o primeiro artista convidado a participar neste projeto, o primeiro a pôr em prática a vontade de criar um diálogo com o espaço público. A obra exposta tem o nome de A Malha e é composta por uma rede de 155 esculturas semelhantes que ocupam a fachada da galeria. Nestas esculturas o objeto representado é sempre o mesmo: camisas (camisas brancas). As esculturas são representações perfeitas de uma camisa dobrada, como se estivessem em exposição na montra de uma loja de roupa ou, num atelier de alfaiate. A atenção ao detalhe, e a técnica de Isaque Pinheiro sobressaem, como se o rigor de representar uma camisa acompanhasse o rigor que existe em vesti-la.

Em oposição a este rigor, cada camisa foi severamente picada a martelo, revelando o molde em ferro que compõe a sua estrutura. Cada uma das camisas tem o vestígio deixado pelo martelo, acentuando a dualidade entre a delicadeza da técnica e a austeridade da ferramenta. Em todo esta grande painel de camisas, o único sítio que nunca é atingido pelo martelo, são os 155 colarinhos, assumindo-se imediatamente como a característica do objeto que mais sobressai ao olhar. A dimensão dos orifícios que perfuram as camisas variam, algumas têm apenas um pequeno buraco, noutras a única parte que ainda resta da escultura é precisamente apenas o colarinho. Este movimento de partir o cimento e perfurar a escultura, alastra-se por todas as camisas que, na totalidade da instalação, cria ondas de volumetria que reanimam a fachada da galeria. Os restos das esculturas permanecem no chão ao longo da fachada, como se assistíssemos a um projeto ainda em progresso.

Mas, o que Isaque Pinheiro pretende sugerir com a representação de camisas brancas?

A Malha recria uma série de escultura de 2008 intitulada de Colarinhos Brancos, as primeiras e originais camisas brancas produzidas por Pinheiro. E em relação ao seu título, João Silvério[1] escreve que “O modelo utilizado para as esculturas é genericamente atribuído a uma postura masculina (mas não só) mais formal: a camisa branca com colarinhos brancos”[2], sugerindo que a utilização do termo “colarinho branco” está no centro das intenções do artista. Esta expressão corrente determina as características de um profissional que desempenha funções de gestão, administrativas ou burocráticas; a cor do colarinho remete para a nossa memória coletiva como um indicador de alto status social, rigor, formalidade e etiqueta.

Nesta sequência, surge-nos a expressão “crime do colarinho branco”, associada a crimes como a corrupção, fraude, ou lavagem de dinheiro, cometidos por alguém com alto poder económico e influência, e inclusive pode ser uma área de especialização para advogados. A Malha recupera o mesmo motivo da obra de 2008, com a diferença da intervenção do martelo e, de agora, estarem expostas num espaço publico. Aqui, Isaque Pinheiro estende ainda mais o sentido da obra e do colarinho branco que permanece intacto: cada uma camisas esculpidas encontra-se referenciada a um processo real que corre ou correu termos na Justiça portuguesa. Sobre este assunto esclarece-nos o advogado Fábio Gomes Raposo, convidado a escrever um ensaio sobre a instalação:

“Os processos em causa abrangem várias áreas do Direito, diferentes instâncias ou órgão decisórios que atuam no sector, incluindo uma panóplia alargada de tipos de ação. Processos mediáticos e desconhecidos. Alguns, com causas de centenas de milhões de euros e outros, de uma centena de euros. Uns, de maior litigiosidade e outros, solucionados por acordo. Casos caricatos a juntarem-se a outros, repulsivos. (…) Processos que envolvem gigantes económicos e cidadão anónimos.”[3]

Isaque Pinheiro sugere uma obra política ao realizar um possível retrato da justiça portuguesa, expondo em público processos judiciais que não são diretamente visíveis. Cada camisa é um corpo e, cada picada feita a martelo, talvez uma sentença. A fachada da .insofar torna-se numa montra que expõe uma malha de processos judiciais. É uma obra que revela o privado em público, acessível a todos, sem sequer ser necessário entrar no espaço da galeria. O artista é aqui um produtor de objetos, mestre da técnica e estética, das palavras e do seu sentido.

A Malha de Isaque Pinheiro pode ser vista na fachada da galeria .insofar até ao dia 12 de julho de 2022.

 

[1] Convidado a escrever uma reflexão sobre a intervenção de Isaque Pinheiro na .insofar.

[2]João Silvério em “A Malha de Colarinhos Brancos” disponível na folha de sala de A Malha.

[3] Fábio Gomes Raposo em “Uma arte Justa”, disponível na folha de sala de A Malha.

Laurinda Marques (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)