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Alice Miceli e o sublime subterrâneo na Escola das Artes

A exposição Em Profundidade (campos minados): Angola e Bósnia[1], da artista brasileira Alice Miceli (1980), em exibição na Escola das Artes da Universidade Católica do Porto, revela-se-nos no momento atual em que assistimos à invasão da Ucrânia pela Rússia de caráter premente. Não obstante a temática e questões geopolíticas que estão na origem do trabalho da artista, ao entramos na sala de exposições somos surpreendidos pela aura silenciosa e bucólica que as imagens – elegante e coordenamente dispostas ao longo das paredes – nos transmitem: o verde intenso das fotografias de Angola, de um território que à primeira vista nos parece selvagem, virgem, inexplorado em contraste com a paisagem hostil e despida que domina as imagens da Bósnia.

Aparentemente banais, as paisagens adquirem novas leituras à medida que as observamos com maior minúcia, num jogo de decifrações e desocultações que envolvem o espectador, em que os signos – marcadores e placas de aviso de minas subterrâneas – se revelam. A tranquilidade velada das imagens dissipa-se ao apercebermo-nos que se tratam de campos minados que percorremos com a artista, cujos passos e a lente fotográfica nos conduzem pelo interior de territórios normalmente inacessíveis. A ameaça e o perigo eminente que não vemos, a invisibilidade que a artista procura transformar em imagem – e que carateriza a sua prática artística – concretizam-se na exposição atual em fotografias de paisagens captadas de uma perspetiva interna e de uma intimidade desarmante.

O interesse da artista por paisagens que se tornaram impenetráveis, como a própria designa, pelas ações humanas, questões da representação de paisagem e questionamento sobre lugares que foram alterados e sofrem algum tipo de ocupação ou de contaminação pelo homem, remontam ao Projeto Chernobyl (2010) através do qual procurou transformar em imagens a invisibilidade do que nos ameaça. A partir de Chernobyl a artista prossegue com a investigação de territórios traumatizados, questionando-se sobre outras paisagens impenetráveis a serem consideradas na superfície da Terra e os seus problemas de representação ao elaborar a série fotográfica Em Profundidade: (campos minados), projeto de investigação que desenvolve entre 2014 e 2019, numa combinação entre política, imagem e experimentação fotográfica. Centrado nas representações fotográficas da paisagem, nomeadamente em zonas pós-conflito e onde foram deixadas minas terrestres, Alice Miceli reflete sobre a contradição entre a invisibilidade e a violência de dipositivos militares. Se no projeto Chernobyl era a invisibilidade da matéria que a artista procurava capturar, confrontando-nos com paisagens vazias, mas carregadas de energia fisicamente invisível – a radiação que paira e ocupa permanentemente o espaço – já nos campos minados o que é impenetrável não é a visibilidade em si do objeto mina, mas uma questão da profundidade do próprio espaço a ser capturado bidimensionalmente na imagem[2]. É essa profundidade que se torna impenetrável, que não podemos cruzar nem caminhar literalmente, a ameaça que se esconde debaixo do solo.

Com o objetivo de denunciar e realçar visualmente no espaço as consequências da contaminação por minas e explosivos de guerra em regiões gravemente afetadas e geograficamente distintas, Alice Miceli fotografou campos minados nos quatro continentes: Camboja, Colômbia, Bósnia e Angola para a elaboração da série Em Profundidade (campos minados), criando quatro conjuntos que se complementam. Com curadoria de Luiz Camillo Osório a mostra em exibição na Escola das Artes da Universidade Católica do Porto apresenta-nos, por questões de espaço e por conta das relações geopolíticas mais evidentes[3], os capítulos referentes à Bósnia e Angola. A sequência visual das imagens em exibição coloca o espectador em contacto com o tempo: o tempo de contemplação e de interpretação da obra; o tempo da artista para capturar as fotografias; o tempo e estado atual das paisagens que se nos revelam; e o tempo da guerra que permanece ainda que cessados os conflitos. A disposição espacial das duas séries, em lados opostos na sala de exposições, permite um diálogo curioso entre ambas e uma leitura interessante do espectador que tem a possibilidade de entrar dentro do campo estético e visual das obras. Impressões de larga escala, as 15 fotografias da série Angola e as 9 fotografias da série Bósnia, revelam-nos paisagens infinitas tal como a potencial acção das minas ativas que ali perduram. À medida que observarmos as imagens que compõem cada série, acompanhamos os passos de Alice Miceli que avança pelo interior das paisagens ao mesmo tempo que avançamos pelo interior das imagens, revelando-nos a fotografia como um exercício físico e ótico. Deixamo-nos conduzir pela lente da sua câmara, por exercícios de perspetiva, enquadramentos de paisagem, jogos de aproximação e distanciamento do foco, descentralizações e deslocamentos da artista. A ameaça escondida, o perigo que não vemos, que se esconde e subsiste debaixo do solo e que a artista com grande engenho dá a ver em imagens de uma falsa visão bucólica, Memória velada da guerra, sobre a obstinação com o território intransponível, sobre o temor de se movimentar que fica como resíduo (concreto e inconsciente) de uma guerra acabada, mas que não termina nunca[4]. Territórios traumatizados, zonas de exclusão abandonadas que a artista transpõe, registando violências históricas e comprovando que as guerras continuam a deixar marcas ao longo dos anos. A invisibilidade concreta e letal que atravessa essas paisagens que Alice nos revela num trabalho documental e factual mediante a criação de uma linguagem de dimensão poética e de denúncia de problemas geopolíticos para que não sejam esquecidos. Imagens vazias da figura humana, mas cuja presença prossupõem, tanto a do espectador como a da artista, cujo corpo é parte ativa da formulação do trabalho, numa operação performativa dentro de terrenos ameaçadores em que cada passo é o limbo entre a vida e a morte. Experiência estética que nos dá a ver conflitos e suas margens, seus resíduos explosivos e subterrâneos[5], é na tensão entre a potencialidade explosiva das minas e a aparência bucólica das paisagens que reside a genialidade e beleza da série Em profundidade (campos minados): Angola e Bósnia.

Em profundidade (campos minados): Angola e Bósnia, de Alice Miceli, está patente Escola das Artes da Universidade Católica do Porto até ao dia 23 de junho.

 

 

[1] Inaugurada a 5 de junho, a exposição de entrada livre pode ser visitada até ao dia 23 de junho de 2022.

[2] Citação da artista durante a entrevista conduzida por Ana Sophie Salazar, Conversa com Alice Miceli e Luiz Camillo Osório, publicada na revista Contemporânea (Ed. 04,05,06/2022) a propósito da exposição.

[3] Osório, Luiz Camillo – Imagem do que não se mostra: o sublime subterrâneo (folha de sala da exposição).

[4] Osório, Luiz Camillo- Idem.

[5] Idem ibidem.

Mafalda Teixeira mestre em História de Arte, Património e Cultura Visual pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estagiou e trabalhou no departamento de Exposições Temporárias do Museu d'Art Contemporani de Barcelona. Durante o mestrado realiza um estágio curricular na área de produção da Galeria Municipal do Porto. Atualmente dedica-se à investigação no âmbito da História da Arte Moderna e Contemporânea, e à publicação de artigos científicos.

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