The Milk of Dreams: O mesmo, diferente – Bienal de Veneza
Em meados de maio por toda a Itália, esvoaçavam partículas de pólen esbranquiçado pelas ruas, acumulando-se em zonas de menos vento em pequenas nuvens suaves e frágeis. Este fenómeno, que não excluiu Veneza, enquadrou, por coincidência a ideia central da curadora, Cecilia Alemani. Optando por mostrar uma visão abrangente da universalidade da produção de arte, vejo repetidamente conceitos como a maternidade, o trabalho manual, a ligação com a natureza e a sua consequente intervenção tecnológica. Seguindo estas três ramificações encontro nos dois espaços organizados pela curadora, o Arsenal e o Pavilhão Central do Giardini que, inevitavelmente, são propagam um elemento de mistério, fantasia e suspense como estas amostras de organismos que se polinizam e reproduzem por toda a cidade.
Pergunto-me como foi possível criar uma exposição a este nível internacional intersetada por uma pandemia mundial. A resposta talvez seja a própria reação ao aparecimento de uma nova doença: os sistemas de cuidado (care systems) físico, psicológico e espiritual. Neles está presente a representação e multiplicidade de formas na qual se desdobra o corpo: o poder simbólico da ideia do corpo como semente, elemento individual, mas também como célula pertencente a uma comunidade. Através da reflexão das suas funcionalidades biológicas bem como os seus fenómenos místicos, o trabalho, a imaginação e a evolução tecnológica estas redes de cuidado (care = cuidar, tomar conta) encontraram um lugar comum nesta Biennale.
A obra de Carrington não só dá o título, ponto de partida, da exposição como é também uma premissa estética. Na sua pintura Portrait of the Late Mrs Partridge (1947), que vejo numa das salas do Pavilhão Central, encontro uma mulher de pescoço comprido vestindo um longo manto vermelho de cabelos loiros em pé, agarrando numa cesta em forma de noz e afagando um enorme pássaro azul. Esta figura de influências célticas, parece descodificar a paisagem mágica que a rodeia, prestar apoio ao animal que a acompanha, mas também impor-se como elemento central da pintura. Esta artista faz parte um grupo selecionado por Alemani às quais assumo como referências históricas, mas também como justificação das suas escolhas mais contemporâneas. As salas de “arquivo” incluem por exemplo: Paula Rego, Dorothea Tanning, Josephine Baker, Remedios Varo e Sophie Taeuber-Arp. E é com esta base que são introduzidas artistas, que na sua maioria, se identificam como Mulheres, numa proposta grandiosa que toma por total a corrente das atuais discussões da arte contemporânea. Fica a curiosidade para, dentro de dois anos, saber se verdadeiramente a instituição da Biennale de Veneza se mantém uma plataforma flexível, disruptiva e CRÍTICA… Esta experiência de visita à Biennale foi, mais que tudo, poder absorver a sensação de pertença e conforto, onde pares artistas que se admiram, provocam, complementam e principalmente, ver uma exposição organizada para o seu próprio tempo.
Começando pela exposição do Pavilhão Central do Giardini, encontro na primeira sala, uma enorme escultura de um elefante (Katharina Fritsch, Elefant/Elephant, 1987). Este statement da primeira impressão dá, desde logo, a ordem do que estará para lá daquela sala. O elefante é o símbolo da estrutura familiar e das sociedades matriarcais, mas também do cativeiro e da ganância humana. Este lugar de elevada importância, ocupado pelo animal é, então, o que me leva ao trabalho, por exemplo, de Cecilia Vicuña, pelas pinturas ricas numa paleta de múltiplas cores e que emolduram cenas de uma narrativa tanto pessoal como geográfica, em que animais têm gestos e posições humanas como é o caso de Leoparda de Ojitos (1976). Esta conexão pura com a natureza faz a ponte por exemplo para o trabalho de Rosana Paulino (Senhora das Plantas series, 2019) que mostra desenhos em aguarela e grafite do torço de mulheres nuas, que se metamorfoseiam com as raízes de plantas que seguram, lembrando a ligação à natureza e ao cosmos do corpo feminino.
Esta observação do objeto base da exposição encontra também um ponto de vista mais analítico sobre o presente modelo económico, às mudanças políticas e às injustiças sociais, criticando assim a híper exploração da natureza e dos seus recursos como o caso de Rosemary Trockel que engrada em grande escala trabalhos de tricô (The Same Different, 2013 e Study for The Same Different, 2013), criticando a crescente desvalorização do trabalho manual do artesanato numa sociedade industrializada. Tendências contemporâneos associadas ao trabalho e ao corpo em função da tecnologia são igualmente alvo de crítica como no vídeo de Sidsel Meineche Hansel (Maitenancer, 2018) em que os corpos mecanizados e idealizados de sex dolls num bordel alemão são documentados, no vídeo a autora revela a fisionomia destas máquinas, as técnicas de manutenção e entrevista até alguns dos seus utilizadores.
No Arsenal, a narrativa e tom anterior é continuada, num espaço com maior área, e por sua vez, uma maior ocupação da área pelos artistas. Aqui, vejo uma passagem da avaliação do “nós2, a natureza e a história para uma viragem para a investigação de proezas tecnológicas. Por tecnologia entendo a sua palavra base: técnica e sua articulação com uma necessidade de crítica. É nas tapeçarias de Igshaan Adams (Bonteheuwel / Epping, 2021) por exemplo, que se encontra o seu minucioso trabalho de contas, cordas, lã e conchas que, visto de longe forma uma imagem pontilhada de uma paisagem abstrata. O mesmo com Gabriel Chaile, vejo monumentais peças de barro (Genealogía de la forma, 2019) que criam um labirinto monolítico apertado para a multidão de visitantes. Sondra Perry retoma o assunto dos avanços imparáveis da tecnologia com Lineage for a Phantom Zone (still) (2021), onde recolhe material áudio visual sobre a exploração da identidade e corpo negro no espaço virtual chamando a atenção para a sua recorrente desumanização online. Num final, impressionante, Barbara Kruger com Untitled (Beginning/Middle/End) (detail) (2022) lê-se palavras de ordem afixadas por todo o espaço, desde o papel de parede a ecrãs. Frases como “Please Mourn” (Por favor lamenta) sobrecarregam o olhar, dando o público a deixa para o que sentir, como bots sem sentimentos que vagueiam por Veneza em modo automático.
É neste culminar que se encontra a pluralidade desejada por Alemani, a idealização do corpo etéreo e mitológico a par de análise de padrões contemporâneos que comentam fortemente a degradação dos valores da sociedade contemporânea. Propondo, na minha opinião, uma visão renovada sobre questões como rituais, tradições e outras saberes anciãos em paralelo com VR, a destruição planetária e a desvirtuamento da nossa própria matéria corporal. Esta Bienal, ao contrário da passada May You Live In Interesting Times de 2019, a curadora procurou criar uma consciência coletiva e comunitária: ao encontrar a humildade na dificuldade de organizar uma Biennale de Veneza, no que se vê, através de uma grande pesquisa de novas (e antigas) práticas ofuscadas pelos holofotes das grandes estrelas da arte contemporânea, Alemani, propõe assim um espaço de discussão e partilha que continua mesmo depois do seu fim em novembro de 2022.
A Biennale de Veneza e a exposição The Milk of Dreams podem ser visitadas até ao dia 27 de novembro de 2022.