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“No pátio interno há uma piscina”[i]

A língua portuguesa é abundante em palavras para jardins; além de quinta, um terreno plantado nas traseiras de uma casa chama-se quintal, um terreno plantado com um destino particular chama-se jardim, como por exemplo o jardim botânico, e um terreno com produtos hortícolas, quer seja aberto ou fechado com sebes, chama-se horta.”[ii]

 

Hortus Conclusus é por definição um jardim murado. Um lugar exterior à habitação, fechado à rua. Encerra o ambiente do ideal, desenhado à luz do sonho e pela utopia não acessível. A sua expressão máxima é o jardim de Éden ou o O Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch.

Com expressão na Idade Média o Hortus Conclusus assumiu outras descrições. O Hortus Lundi que é o jardim lúdico, a sala de recreio no exterior. O Hortus Catalogi ou vulgarmente a horta, jardim aromático e medicinal, o pomar. O Hortus Contemplanis, formalizado pelo claustro, como elemento da arquitetura e da relação vertical com o divino – é o jardim para o pensamento e meditação.

Paraísos Urbanos de Martîm não é indiferente à antologia formal do Hortus. É tudo isto, embora a direção que o artista nos aponta seja a de um jardim suburbano, refrigério entre o betão e o asfalto quentes.

O tríptico de quadros que compõe a série Paraísos Urbanos põe em perspetiva o binómio privado/público. Expõe o lugar da intimidade devassada pelo público. Uma audiência que somos nós, espetadores de uma encenação quotidiana numa varanda, num pátio, num logradouro urbano ou terraço, tornados o epicentro do subúrbio. Uma audiência que também fala ao olhar vizinho do apartamento ao lado ou em frente, através de janelas e cortinas entreabertas. A escala das peças alimenta a perceção de entrada em palco. Subindo à boca de cena, somos absorvidos pelo imaginário vibrante de tons pastel. Num primeiro momento é um olhar caricato e não-relacional com aqueles personagens, para se tornar depois próximo. Está implícita uma reflexão acrítica sobre a densidade habitacional, as situações socioeconómicas da sociedade brasileira e a procura do interlúdio entre o ofício e o ócio. Visões que nos parecem distantes, vindas do outro lado do Atlântico, mas que no fundo não nos sãos alheias e com as quais nos relacionamos – afinal não são somente os pássaros que procuram banhar-se nos charcos citadinos.

A narrativa comum entre as peças é o corpo. O corpo é material de reflexão sobre o desejo de despojamento material e a liberdade de desejar, “o desejo de desejo”[iii], cuja piscina sacralizada por David Hockney é aqui insuflável e mundana. A extravagância de cores, formas e patrões versus o peso dos revoltos céus é um guião erótico entre o kitsch e o físico daquelas figuras. A plasticidade dos jogos de prazer entre o corpo ao sol e a água que refresca ascende ao topo dos edifícios, para deixar de ser lugar-comum estéril e ser um luxo, um deleite estético mais ou menos indiscreto numa vulgar ida a banhos.

Paraíso Urbanos integra uma temporada expositiva. Primeiro apresentado na Fábrica do Braço de Prata, sublinhando o envolvimento das telas, sem molduras ou limites com o espaço e o espectador. Depois em Coimbra, na Casa da Esquina, onde o diálogo é luminoso. Os paraísos de Martîm falam de uma tropicália, bem europeia, que oscila certamente entre um black e white lodge Lynchiano[iv], como necessidade urgente de escape à realidade.

Paraísos Ubarnos, de Martîm, está patente na Casa da Esquina em Coimbra até 17 de junho.

 

 

[i] Título retirado do verso da canção Tropicália de Caetano Veloso

[ii] Henry Frederick Link in Travels in Portugal and through France and Spain, 1801

[iii] Texto curatorial de Paraísos Urbanos por Mafalda Lencastre

[iv] Referência ao Imaginário do cineasta David Lynch

 

Arquiteto (FA-UL, 2014) e curador independente (pós-graduado na FCSH-UNL, 2021). Em 2018 funda o coletivo de curadoria Sul e Sueste, plataforma charneira entre arte e arquitetura; território e paisagem. Enquanto curador tem colaborado regularmente com algumas instituições, municípios e espaços independentes, de que se destaca "Espaço, Tempo, Matéria" (exposição coletiva no Convento Madre Deus da Verderena, Barreiro, 2020), "How to find the centre of a circle" com a artista Emma Hornsby (INSTITUTO, 2019) e "Fleeting Carpets and Other Symbiotic Objects" com o artista Tiago Rocha Costa (A.M.A.C., 2020). Foi recentemente co-curador, com a arquiteta Ana Paisano, da exposição "Cartografia do horizonte: do Território aos Lugares" para o Museu da Cidade, em Almada (2023). Escreve regularmente críticas e ensaios para revistas, edições, livros e exposições. É co-autor do livro "Gaio-Rosário: leitura do lugar" (CM Moita, 2020), "À soleira do infinito. Cacela velha: arquitectura, paisagem, significado" (edição de autor com o apoio da Direção Regional da Cultural do Algarve, 2023) e de "Geografias Urbanas" (em publicação). A atividade profissional orbita em torno das várias ramificações da arquitetura.

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