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Emotional Landscapes de Ragnar Kjartansson no Museu Thyssen Bornemisza

Vi a exposição de Ragnar Kjartansson faz hoje uma semana. Não costumo escrever crítica tanto tempo depois de ter visto uma exposição, mas as circunstâncias, desta vez, levaram a que acontecesse. Há nisto o receio de não conseguir captar o entusiasmo momentâneo, subjacente à escrita sobre uma boa exposição que acabámos de ver – o exercício, agora, será mais distante. E diria que, apesar de não planeado, o destino foi oportuno – esta é uma exposição sobre distância (daí ter achado boa ideia fazer toda esta introdução).

A exposição inicia-se, calmamente, com The Man, uma das várias vídeo-instalações da mostra, encapsulando Pinetop Perkins, um dos grandes nomes do blues norte-americanos, tocando piano, contando-nos histórias pelo meio, sob um dia de sol. Há algo aqui de profundamente familiar, reconfortante – as dimensões do ecrã mergulham-nos na ação, levando-nos a pensar que o músico toca apenas para nós. Entrar na sala é, nesse sentido, alcançar uma dimensão paralela, íntima, mas cosmológica. Num still contínuo vemos um retrato de uma América em vias de extinção – a América dos Blues, do Rock and Roll, mas também da ruralidade, das fazendas agrícolas entretanto abandonadas (aqui dispõe-se uma à beira da ruína, fitando o piano e o pianista), uma América que envelheceu com o século XX – mas que teimosamente persiste, tocando até onde der, porque ao fruto da mais imediata rejeição, sabe mostrar-nos que ainda tem de viver. Pinetop Perkins morreu aos 97 anos, um ano depois da primeira mostra desta instalação.

Na próxima sala iremos encontrar a obra mais aclamada de Kjartansson, The Visitors. Neste cenário, arranja-se dispersa num largo espaço onde podemos ver os ecrãs de um único ponto, dispostos à volta da sala, de frente uns para os outros. Percorrer o espaço é entrar neles – e conforme nos aproximamos de cada um, ouvimos mais de perto o som que emitem, abafando os mais distantes. A experiência é comovente. Ainda que se cante a mesma letra, repetidamente, como um mantra (Kjartansson não é tímido em revelar o seu interesse pela repetição), a música é triste, mas doce e embala-nos. Talvez por estar distante de casa, mas pareceu-me encapsular verdadeiramente o que poderemos entender por saudade. Lembrou-me do passado recente da pandemia, mergulhado em reuniões Zoom: vemos cada músico fechado num espaço particular, obedecendo ao mesmo ritmo de todos os outros. A boa notícia é que, pelo menos aqui, todos se juntam no final: descobrimos que afinal estavam em divisões diferentes da mesma casa, a que se apresenta no primeiro ecrã. É interessante verificar que em 2019, o jornal The Guardian nomeou esta obra como a melhor do século XXI. 3 anos passados parecemos viver num outro mundo: estamos a atravessar uma pandemia, e mais recentemente, despoletou-se uma guerra na Europa. Gostava de perceber o que seria ter visto esta obra há 3 anos (ou há 10, a obra é de 2012), porque penso que, agora, só terá ganho mais sentido. Fez-se, dolorosamente, premonição – como um remédio descoberto antes da doença.

Espalhadas pelo primeiro piso do museu e inseridas dentro da coleção de arte contemporânea, estão as restantes obras desta monografia de Kjartansson. Para as encontrarmos é necessário descobrirmos o resto do museu, ambos motivando sempre, a nossa busca e interação.

De um lado do piso temos The End, do outro, God. Na primeira, vemos um conjunto de ecrãs onde, nas Rocky Mountains americanas, um conjunto de homens toca guitarra e piano, à maneira de The Visitors, mas numa composição conjunta de inspiração country. Aqui, ao contrário da dita, o cenário não é propriamente íntimo, mas gélido e longínquo: muitas personagens aparecem distantes, quase submersas na imensidão das montanhas. É a música a principal fonte de aquecimento – tal como a densa roupa que cobre cada um dos intérpretes. Os desenhos expostos antes de entrarmos nesta sala, a série From The Valley of the World – Weariness in British Colombia, descrevem também uma imensidão gélida, desértica, onde árvores caem em abstrações de paisagens – há pequenas plantas que, no entanto, despontam. Infelizmente, a cor salmão da sala apresenta-se algo distrativa para composições tão delicadas.

Já em God, Kjartansson encarna um crooner americano à maneira de Frank Sinatra, marcando um tom humorístico, também fundamental na compreensão da sua obra. A designação de pós-romântico que muitas vezes lhe é atribuída assenta-lhe bem, sobretudo quando ouvimos durante 30 minutos o artista cantando-nos a mesma frase (“Sorrow conquers happiness”), sob cortinas de um vermelho rosado (cor ainda mais exagerada que a da intensa cenografia teatral), que se estendem ao próprio espaço físico da sala. A frase é dramática, sonante, mas rapidamente se desfaz em absurdo, não só através da repetição, como no cenário que notamos, progressivamente, excessivamente artificial, algo cínico. Como é que o drama sobrevive no mundo da ironia, alguém se perguntou um dia. Terá sido aí que a pós-ironia surgiu. Aqui, ela aparece-nos mais doce que nunca. No entanto, para Kjartansson, não se apresenta como critério, mas consequência. Seja na comédia ou no drama, o que lhe parece importar é fazer-nos sentir alguma coisa, a ironia é apenas um traço de personalidade, ou uma inevitabilidade necessária ao contexto de hoje. Porque Kjartansson é, sobretudo, o artista-ator, como se cada peça (vídeo ou objeto) fosse vestígio de uma performance. Muitas vezes é a arte que é literal e a ironia o que detemos como realidade.

As obras tocam-nos, não tanto através da sua beleza misteriosa, sedutora (ainda que a encontremos nos interstícios da repetição), mas de uma emoção imediata, um exercício empático que nos permite entrar nestas “paisagens” sem rodeios. Uma espécie de utopia onde gostaríamos de estar e permanecer.

Emotional Landscapes de Ragnar Kjartansson encontra-se em exposição no Museu Nacional Thyssen-Bornemisza  até ao dia 26 de junho.

Miguel Pinto (Lisboa, 2000) frequentou a licenciatura em História da Arte pela NOVA/FCSH, através da qual veio a realizar um estágio no Museu Nacional do Azulejo. Participou no projeto de investigação VESTE – Vestir a corte: traje, género e identidade(s), alojado pelo Centro de Humanidades da mesma instituição. Criou e gere o projeto a Parte da Arte, que pretende divulgar e investigar o panorama artístico em Portugal através de vídeo-ensaios explicativos.

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