Sara & André – O Colecionador de Belas Artes na Galeria Quadrum
Na Galeria Quadrum pode ser visitado o mais recente projeto de Sara & André, O Colecionador de Belas Artes. A dupla de artistas presta continuidade ao trabalho em circuito, dialogando com o sistema artístico e os seus intervenientes.
Diria que o trabalho plástico e visual de Sara & André é tão importante como o fio comunicante que coloca os agentes das suas propostas a descoberto. No entanto, ainda que sendo um trabalho marcado pela força da ideia, do conceito e do contacto, é no cruzamento com a apresentação – neste caso, 27 pinturas de formato semelhante -, que o trabalho da dupla se cumpre.
O Colecionador de Belas Artes resultou do contacto estabelecido com colecionadores privados em Portugal e os seus acervos. Após a escolha de algumas obras por parte dos colecionadores, reuniram-se as condições para a execução das pinturas que podemos encontrar na Galeria Quadrum.
Destacaria três pontos sobre a proposta de Sara & André.
O primeiro respeita ao trabalho de citação implicado no modo como a exposição está pensada. O projeto é um diálogo direto com o trabalho de António Areal. Em 1971, Areal apresentou um conjunto de 15 pinturas na Galeria São Mamede. Nelas podíamos encontrar uma silhueta anónima, semelhante à que pode ser vista nas pinturas de Sara & André. Tal como nas pinturas expostas na Quadrum, Areal apresentava o colecionador carregando uma obra em primeiro plano, sendo que num plano de fundo, podiam ver vistas outras obras, tal como sucede nas pinturas de Sara & André.
Os artistas reativam a proposta de Areal. Simultaneamente, dialogam com os colecionadores, os seus acervos, mas também com os artistas. A citação, e o uso de obras de outros intervenientes para a construção do seu trabalho, mostra a importância daquilo que não é visível e que não possui um corpo tangível – diria que é a força da associação, uma espécie de jogo contaminado pelo humor, ou uma não-fórmula feita com estas componentes em doses equilibradas, que produzem no espectador um elemento a que chamaria choque familiar. Qualquer coisa que conduz ao segundo ponto que destaco, que se prende com a noção de falsificação. Ao dialogar com a obra de outros artistas, representando-a, no caso da pintura, por meios semelhantes ao original, esse efeito de familiaridade encontra um terreno que parece chamar o riso e o humor envolvidos nessa falsificação autorizada. No caso de O Colecionador de Belas Artes, a noção de falsificação, citação, ou apropriação, está em causa no próprio aspeto formal das obras, tratando-se por isso de uma apropriação elevada a mil. Sara & André não só ativam o trabalho de outros artistas, como pintaram e montaram as pinturas, nos 27 casos, com os meios iguais aos de Areal em 1971[1].
A proposta de Areal à época, propunha destabilizar conceitos, no caso, o conceito de autenticidade[2]. Uma outra leitura do trabalho de Areal, respeita ao carácter mercantil do objeto artístico, entendendo a figura do colecionador, mas também do espectador, como agentes que legitimam a obra como mercadoria. Diria que, ainda que umbilicalmente essa hipótese esteja presente na actualização de Sara & André, parece que o foco da dupla foi o de afirmar e habilitar a atitude do colecionador, qualquer coisa que leva ao terceiro ponto.
Tratando-se de um trabalho que opera em circuito, e recordando trabalhos anteriores, o mais recente Curated Curators I, II e III, exposto na Zaratan Arte Contemporânea, (2017), mas também Exercício de Estilo, MNAC (2014), ou ainda o Inquérito a 263 Artistas, uma edição especial da Contemporânea (2021), o mapeamento do território artístico e os seus intervenientes no contexto da arte contemporânea portuguesa é feito de um modo informal, como se pode ler nas primeiras páginas do livro que resultou do projecto Curated Curators[3]. No caso do Colecionador de Belas Artes, Sara & André investigaram aspetos como as motivações dos colecionadores, o que legitima uma coleção, ou qual pode ser o contributo dos colecionadores para a construção de discursos sobre as obras, qualquer coisa que pode ser entendida como um trabalho de curadoria – completar uma coleção como pensar e escolher obras para determinada exposição – em súmula, criar. Em qualquer caso, parece existir um balanço entre intuição, reflexão e negociação. Encontrar o que está em falta, ou por vezes, irremediavelmente perdido.
A exposição, O Colecionador de Belas Artes, de Sara & André pode ser visitada na Galeria Quadrum, até 19 de junho.
[1] Esmalte, óleo, grafite, tinta da china, tinta pigmentada, aguarela, lápis de cor, esferográfica, marcador à base de água e marcado à base álcool sobre platex montado em madeira, 170 x 60 cm e 170 x 80 cm
[2] “A fuga ao estímulo visual próprio das técnicas em teoria artísticas e de facto profundamente estéticas, transferiu a nossa problemática de autores (de uns quantos autores) para o nível da intervenção ética – uma moral prática, uma sociabilidade da vivência.Os estesistas da fuga são-no – sobretudo não do facto mas da ideia do facto: fazem obras não estimulantes quanto ao choque percepciona, mas perturbadoras dos conceitos e dos preceitos culturais”, António Areal, “Notas de Evidência Aleatória”, em, Areal – Pinturas e Desenhos na Galeria São Mamede, Lisboa, 1971
[3] Ver, Uma breve história da curadoria, Lisboa: Documenta, 2019