Museu das Obsessões: For the eyes that never blink, de Christian Andersson e Ensaio sobre a Gordura, de Ana de Almeida
“Donald Judd e Michael Fried sonharam ambos com um olho puro, um olho sem sujeito, sem ovas nem sargaço (isto é, sem ritmo e sem restos): contraversões, ingénuas na sua radicalidade, da ingenuidade surrealista a sonhar com um olho em estado selvagem.”[1]
A nossa relação com o real não será mais que uma equação mental sobre o que nos é posto à frente, sendo impossível apenas ver. O olho selvagem, referido na passagem que utilizo como preâmbulo a este texto, é totalmente utópico. O tal olho solto de qualquer invólucro, desprendido de um corpo que pense os elementos que o perpassam, é inatingível. Aqui, em For the eyes that never blink, Christian Andersson faz a provocação: esta exposição é para olhos que nunca piscam, olhos sem sujeito, para azar confesso dos olhos de quem a visita.
As obras presentes no espaço expositivo surgem como indícios de uma dimensão onírica que compactua com a realidade, num jogo em que o visível e o invisível se materializam e desmaterializam, confundindo-se. O campo do invisível perscruta, assim, a realidade, criando uma fusão e permitindo que a dúvida recaia sobre a última – a realidade enquanto réplica, a possibilidade de trazer à superfície o sonhado e dar-lhe abrigo no real. O olho que, ao não piscar, não interrompe o contacto com o visível, sendo forçado à diluição do sonhado na realidade, num exercício ao qual não poderá escapar. Tendo em conta a condicionante dos nossos olhos aprisionados, resta-nos questionar, neste espaço, como seria essa galeria de ininterrupções, de uma continuidade total. Um palimpsesto que, assim, deixa de o ser ao aperceber-se do seu anterior indelével.
Em Ensaio sobre a Gordura, de Ana de Almeida, deparamo-nos com uma forma de arquivo peculiar que coloca em questão noções do próprio gesto de arquivar enquanto imposição de hierarquias e seleção de factos bem como da própria noção de ficção que vem sempre associada à própria ideia de arquivo, mas que facilmente nos escapa. Na reunião de um arquivo, criamos inevitavelmente uma narrativa que trará consigo a sua ficção: reunir todos os factos do mundo sobre um mesmo assunto revela-se um ato impossível, deixando assim à ficção a tarefa de completar o gesto arquivístico. A questão do olho selvagem pode ser, novamente, aplicada aqui – para a não existência de ficção num arquivo, seria talvez necessário um gesto também ele selvagem: um gesto robótico, sem corpo, capaz de arquivar imparcialmente o mundo.
Neste compêndio horizontal, talvez na fuga ao hierarquizante, Ana Almeida reúne 90 sabonetes que, individualmente, vão dando corpo e odor a fragmentos históricos selecionados pela artista. Todas estas imagens têm como tronco comum a atual ruína de um complexo fabril (inicialmente propriedade do conhecido industrial Johan Schicht e mais tarde nacionalizado dando origem à Fábrica de Gordura da Boémia do Norte – Setuza) fruta de uma residência da artista na cidade de Ústí nad Labem, na República Checa. Assim, ao percorrermos este arquivo, são frequentes os fragmentos do edifício demolido, frágeis na sua composição e fugazes na sua transladação para o campo do arquivo. Falamos, assim, de uma memória política e simultaneamente resistente e persistente que procura em nós um corpo para além da efemeridade do sabão.
For the eyes that never blink, de Christian Andersson e Ensaio sobre a Gordura, de Ana de Almeida compõem assim a mais recente proposta do ciclo Museu das Obsessões, com curadoria de Ana Anacleto. A visitar até 12 de junho, no Centro de Artes Visuais [CAV], em Coimbra.
[1] Didi-Huberman, Georges. (2011). O que nós vemos, o que nos olha. Porto: Dafne Editora. p. 57