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ATO (DES)COLONIAL no Museu do Aljube – Resistência e Liberdade

O antigo Parlatório da Cadeia do Aljube em Lisboa, local que serviu para o encontro dos prisioneiros com as visitas do exterior, sempre divididos por uma separação, foi o espaço escolhido para alojar ATO (DES)COLONIAL, a mais recente exposição temporária do Museu do Aljube – Resistência e Liberdade.

A pequena sala do Parlatório divide-se em duas secções: uma primeira, colorida e diversa, procurando explorar e documentar as lutas de resistência colonial nos territórios ocupados por Portugal, e o consequente processo para uma revolução que levou à afirmação da independência destas nações; outra paralela, mas comunicante, toda em cinzento, onde se explora as origens e consequências do império colonial português. Sempre rodeados por textos de sala, a exposição revela-nos sempre a sua literalidade: tudo o que pretende é educar, intervir, não nos fazer esquecer. Já nos dizem as frases introdutórias, logo à entrada: “Que este ATO (DES)COLONIAL seja mais um, entre outros, e que gere pensamento e ação anti-colonial e antirracista, abolicionista de todas as formas de violência”.

É nesse sentido relevante a prevalência dos estandartes enquanto insígnia que expõe, resiste e confronta. Na primeira secção colocam-se vários, suspensos quase à nossa altura com os retratos e nomes de figuras-chave no processo de resistência ao colonialismo português: Titina Silá, Deolinda Rodrigues, Josina Machel, Lilica Boal, Carmen Pereira, Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Eduardo Modiane. Na segunda secção, apenas um, comprido, expõe as prisões e campos de concentração decorrentes deste processo de colonização.

Nesta mostra não há obras de arte, e tudo o que poderia situar-se nesta classificação é convertido a documento histórico. É no encarar direto com esses vestígios e testemunhos que o pathos da mostra se manifesta. São de destacar os inúmeros cartazes que se expõem, derivando dos próprios movimentos de resistência colonial como a moçambicana FRELIMO, mas também da comunidade internacional, apelando à independência dos territórios. É importante também o ênfase dado ao papel da mulher no processo revolucionário, documentado em diversos textos e imagens ao longo da mostra, mostrando-nos o papel ativo e empoderador que tanto a FRELIMO como o MPLA terão concedido às mulheres, enquanto agentes fundamentais num processo de mobilização política. Aliás, na imagem de divulgação da exposição, disposta logo à entrada, vemos uma mulher envergando uma espingarda pelos ombros, de olhar distante. Afinal, revolução é uma palavra feminina.

A abordagem objetiva do conteúdo – que não foge à prática museológica verificável na exposição permanente do museu – concede, por vezes, a abrir-se a territórios mais imersivos, cinemáticos. Procura equilibrar-se o excesso de texto com um excerto de Natureza Morta, um documentário de Susana de Sousa Dias, também ele formado através de recoleções de arquivo, e onde o sofrimento dos então colonos é testemunhado através dos seus rostos desolados, amedrontados, horrorizados. A realizadora recorre ainda à câmera lenta, fazendo zoom em faces dispersas no fundo das imagens, que nos poderiam passar despercebidas, mas que não fogem ao mesmo testemunho: o sofrimento é cerrado, inevitável, para onde quer que olhemos. Este diálogo mais afetivo com o visitante é também concretizado no epílogo da exposição, onde se celebra a alcançada libertação das ex-colónias, e onde ouvimos canções, provenientes destes contextos, como testemunhos de uma alcançada concretização, dispondo-se como a banda sonora nos créditos de um filme que acabámos de assistir. Acompanham-nos à saída como um mantra, para não esquecermos os valores que ali foram alcançados, os mesmos que hoje se inscrevem no título deste museu, anteriormente também prisão: resistência e liberdade.

A exposição apresenta-se, sem dúvida, como necessária, sobretudo num país que teima em não problematizar as consequências e vestígios do seu passado colonial, mas pouco imaginativa em termos museográficos, fazendo do excessivo texto de sala a muleta recorrente da sua ação, o que provoca uma débil interação com o espectador e impede algum do confronto mais profundo que poderia estar patente na nossa imediata e difícil relação com objetos provenientes ou evocativos desses contextos: isso concretiza-se no documentário de Susana de Sousa Dias, mas à parte deste não me parece haver muitos mais vestígios duma condução a esse limite inevitável, ao conflito emocional que nos leva a questionar diretamente o nosso ato de espectadores, a nossa origem étnica e sociopolítica, e consequentemente, a construção da sociedade em que vivemos – a maioria parece expor-se como confirmação do texto, em segundo plano, com a informação tida como o elemento principal. É verdade que este questionamento está, de algum modo, sempre implícito numa exposição que pretenda evocar um ato de descolonização, e talvez esta abordagem muito contextualizada, quase jornalística, seja o modo mais correto de abordar esta realidade fielmente. No fundo, é isso que aqui se procura: o rigor do historiador que investiga e expõe, factualmente. Com isso, ficamos com um relato informativo, problematizante, uma aula convertida em espaço, ato que não deixa de ser fundamental: num país onde a extrema-direita tem vindo a ganhar um maior destaque mediático, e com ela novas vias de desinformação, a exposição acorda-nos para que não nos deixemos adormecer.

ATO (DES)COLONIAL está em exposição no Museu do Aljube – Resistência e Liberdade até ao dia 12 de junho.

Miguel Pinto (Lisboa, 2000) frequentou a licenciatura em História da Arte pela NOVA/FCSH, através da qual veio a realizar um estágio no Museu Nacional do Azulejo. Participou no projeto de investigação VESTE – Vestir a corte: traje, género e identidade(s), alojado pelo Centro de Humanidades da mesma instituição. Criou e gere o projeto a Parte da Arte, que pretende divulgar e investigar o panorama artístico em Portugal através de vídeo-ensaios explicativos.

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