Anozero’21-22: Bienal de Coimbra Meia-noite
Sob o título Meia-noite, a presente edição de Anozero’21-22: Bienal de Coimbra, pela primeira vez assumida por duas curadoras, Elfi Turpin e Filipa Oliveira, elege e pensa a noite, evocando-a como lugar de fluidez, espaço de poesia e de resistência ao pensamento normativo. É nessa noite, criadora de conhecimento que dilui as margens e convida a outras leituras do mundo, espaço de quebra de normas, lugar aberto a outras possibilidades de visão e de conhecimento, que mergulhamos ao longo da bienal de arte contemporânea de Coimbra cuja programação se estende por espaços emblemáticos da cidade e que tem no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova o seu epicentro.
Numa convocação da própria noite – que oculta e revela – a escuridão envolve-nos no piso de entrada, ao longo do extenso corredor do Mosteiro, mergulhando o visitante numa experiência performativa, intimista e imersiva a partir da obra da artista italiana Elisabetta Benassi. Potenciada pela penumbra, cadência de luzes e sons, assistimos ao diálogo ficcional e em código morse entre os poetas Sandro Penna e Pier Paolo Pasolini, através de duas lâmpadas que comunicam entre si. Hino silencioso ao corpo, ao amor e à diferença, Gostaria de viver adormecido no interior do doce ruído da vida, 2022, lança a metáfora da meia-noite como espaço de diálogo e de encontro entre os mundos dos mortos e dos vivos. A dimensão quase espectral da imagem de Aurélia de Sousa (1866-1922) autorretratada como Santo António, recebe-nos assim que entramos no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova. A fotografia a preto e branco, Estudo para Santo António (autorretrato), provavelmente realizadas pela própria pintora, evoca a sombria atmosfera de uma cela monástica, estabelecendo-se uma curiosa conexão com o próprio edifício que acolhe a bienal, o antigo mosteiro feminino de Clarissas, de fundação seiscentista. A imagem de Aurélia de Souza trasvestida desperta de imediato a nossa atenção pela fragilidade do corpo, ligeiramente curvado, vestido com o tradicional burel franciscano, captado num momento quase dinâmico como se fosse concluir um ligeiro e instável passo, sugerido pelo pé descalço e gesto das mãos inquietas e cenográficas. O olhar da artista fixa deliberada e frontalmente o observador, saindo das fronteiras do próprio género, fugidia e ambígua, andrógina. Simbolicamente a ambiguidade e fluidez da imagem perpassam a temática da noite que percorre a bienal pensada a partir de uma perspetiva feminista que amplia as vozes que nela participam, convocando novos olhares, subjetividades e pensamentos alternativos. O olhar feminista, a crítica patriarcal, a denúncia do sexismo no mundo da arte, a performance e o humor, dominam o antigo refeitório do mosteiro através da instalação Miles, 2021, de Julie Béna, que conjuga três filmes e esculturas metálicas que desenham uma paisagem espectral. Mais à frente contemplamos Suspensão, 2022, a escultura de Jarbas Lopes de uma fogueira por acender, que se ergue e é sustentada por uma enorme rede de arame. À medida que observarmos a obra evocamos o passado, a invenção do fogo e o seu domínio pelo homem, ao mesmo tempo que refletimos sobre o momento presente de um mundo em suspensão.
Assumidamente antinormativo o programa curatorial da bienal revela o desejo e preocupação em experimentar, partilhar e comunicar formas criativas, inesperadas e marginais de produção de conhecimento que se ampliam a novas vozes que nos ensinam a ver no escuro. A este propósito destacamos as esculturas em terracota da senegalesa Seni Awa Camara, que se constituem como lugares de fala das vozes que foram, e continuam a ser silenciadas, repositórios de histórias pessoais, culturais e de mitos; e o caráter ancestral, antropológico e ritualista das duas esculturas de Gabriel Chaile, seres fantásticos – entre o animal e o humano – que inalando uma substância se apresentam num momento de transformação.
A transformação, transmutação e metamorfose a que se abre a Meia-noite de Coimbra, em que a noite nos é proposta como um espaço-tempo fluído, essa noite em que cantamos a sussurrar como nos revela a instalação da artista portuguesa Maja Escher, em colaboração com Artur Pispalhas e Norberto Lobo, em que a artista se deixa guiar pela voz e movimentos do rio Mondego recolhendo histórias, sons, pedras, lama e vegetação – material que se traduz em esculturas, desenhos delicados e uma partitura musical – através dos quais sugere uma redisposição ambiental, refletindo sobre a água a partir da sua ausência, questionando as suas vozes nos dias de hoje e a dor trazida pelas barragens, poços e estufas. A água, na qual somos convidados a mergulhar através da instalação Olho, Nariz, Boca, Ouvido, Testa, Queixo, Maçã do Rosto, Sobrancelha, 2022, do artista sul-coreano Ru Kim, cujo azul vibrante que domina a sala nos atrai e hipnotiza. Abordando o uso da água, elemento que o ser humano entende como algo passivo, sobre o qual pode agir e usar sem consequências, a intervenção divide-se em três capítulos que confluem no mesmo espaço: um sobre uma ponte em Seul onde muitas pessoas se suicidam, outro sobre o Mar Mediterrâneo, transformado num cemitério face à política de migrações da Europa e, por último, uma referência às minas de lítio em Portugal e à contaminação de água que estas podem causar.
O passado colonial e as suas marcas, a visão antipatriarcal e anticolonial com recurso à arte como manifesto e forma de denúncia, tem na presente edição da bienal um eco particularmente forte. A este propósito destacamos os documentários Como era gostoso o meu francês, 1971, de Nelson Pereira dos Santos que explora o conceito de antropofagia de Oswaldo de Andrade; Monangambeee, 1969, a primeira curta metragem de Sarah Maldoror, que adapta um conto do escritor angolano Luandino Vieira sobre opressão e tortura nas prisões coloniais de Angola; e o caráter autobiográfico e confessional do vídeo Mother,2002-2022, de Carlos Bunga realizado a partir de uma conversa intimista com a sua mãe que fugiu de Angola.
Seguindo o nosso percurso pela Meia-noite, deixamo-nos conduzir por obras que nos surpreendem e atraem como as esculturas suspensas de Mané Pacheco em destaque ao longo de um dos corredores do mosteiro. Criatura, 2022, suspensa a alturas diversas, concebida em borracha natural de cor negra, cordas, tubos de alumínio, ferragens de metal e pelo falso, tanto nos convoca formas orgânicas de inspiração animalesca como o universo do BDSM, confrontando-nos com noções de poder, de domínio e de obediência. O desejo presente numa sexualidade reprimida encontramo-lo no último piso da exposição, numa obra de grande beleza poética Un chant d’amour, 2019-2022, de Laura Lamiel. Célula que nos convida a uma viagem interior e a vivenciar os espaços embutidos e labirínticos da memória e do pensamento do artista sobre o filme Un Chant d’Amour, 1950 de Jean Genet. Iluminada por baixo, a estrutura de aço da célula cercada por paredes espelhadas, parece povoada por uma presença fantasmagórica. Fechada sobre si mesma, mas assombrada pelo olhar e pelo reflexo dos espectadores, divide/duplica a mesa que mobila a cela de cada lado da parede, evocando os mundos monástico e prisional (numa relação curiosa com as celas do próprio Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, posteriormente convertido num quartel militar). A única comunicação entre os dois espaços é feita pelo buraco de cigarro furado no espelho, numa alusão ao filme de Jean Genet, e através do qual flui a comunicação reprimida entre os dois prisioneiros.
A encerrar a exposição no mosteiro A Dream Dreaming a Dream, 2000, de Daniel Steegmann Mangrané, vídeo de animação online em autogeração infinita de uma pantera que se move numa floresta noturna em eterna deambulação onírica. Inspirada nas perceções que os povos indígenas estabelecem com a floresta e as entidades não humanas que a habitam, A Dream Dreaming a Dream revela-nos camadas de diferentes formas de conhecimento e diferentes planos de realidade. É, uma vez mais, no escuro onde aprendemos a ver que terminamos o nosso percurso pela Meia-noite, fantasiando com o sonho de uma pantera que nos transporta para a selva amazónica.
Partindo da ideia de noite e do papel dos morcegos que ajudam a conservar o espólio da Biblioteca Joanina, Elfi Turpin e Filipa Oliveira refletem na presente edição sobre formas marginais e inesperadas de produção de conhecimento, visível na participação de artistas de gerações, disciplinas e subjetividades diversificadas. Apresentando trabalhos e projetos a partir do contexto específico da bienal e da identidade da cidade, constatamos a forte presença de artistas do hemisfério sul, denotando-se a preocupação das curadoras em integrar vozes e formas de aprender que não as convencionais, procurando dar visibilidade, segundo Filipa Oliveira, não ao conhecimento europeu, branco, masculino, mas a esses outros saberes e práticas.
Reunindo o Mosteiro de Santa Clara a maior parte das obras, a bienal apresenta ainda um Circuito de Exposições em espaços emblemáticos da cidade do qual fazem parte os dois polos do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra – Sede e Sereia-; Estufa Fria; Casa das Caldeiras; Teatro da Cerca de São Bernardo e Rua da Estrela, que reúnem obras, muitas das quais inéditas, de mais de 40 artistas e coletivos, que podem ser visitados até ao dia 26 de junho.