Entrevista com Rebeca Romero, autora da capa do mês da Umbigo
Mafalda Ruão entrevista Rebeca Romero, autora da capa do mês da edição online da Umbigo, aprofundando o seu percurso multidimensional, posicionada entre várias culturas, tempos e práticas. É um reflexo sobre a história através de um convite para imaginar o mundo já solto do legado do passado escrito. Ao deixar que os objetos contem a sua história, Rebeca procura uma reconciliação do velho com o novo. Uma harmonia através duma autenticidade intemporal e a uma ficção pop-up.
MR – Como é que ter vindo para Londres, coração da civilização ocidental, moldou a sua obra?
RR – Assim que ultrapassei o choque cultural, por ter vindo do Peru, senti-me intrigada perante a diversidade e todos os mal-entendidos e incompreensões à minha volta. Exploro muito estes conceitos, na minha escultura e escrita.
Adoro Londres, mas também odeio um pouco esta cidade, como acontece com a maioria das pessoas que conheço que se mudaram para cá. Para mim, viver na diáspora implica uma lembrança constante. Manter um vínculo com a minha cultura e a minha terra natal mantém-me enraizada e os desafios que encontro ao tentar manter este vínculo vivo servem muitas vezes como eixo para o desenvolvimento do meu trabalho.
MR – Vejo que a sua prática é muitas vezes site-specific. Como pessoa deslocada, qual a importância de se conectar com um determinado lugar ou ambiente?
RR – Tenho trabalhado em contextos site-specific, mas não só. Ultimamente tenho-me concentrado em criar ambientes e atmosferas imersivas onde transformo o espaço e não o contrário. Além de ser importante ligar-me a um lugar, tento criar uma ligação próxima com o espectador e dar-lhes um safe space onde possam “suspender a sua descrença”, mesmo que por um breve momento.
MR – Da iconografia pré-colombiana às avançadas técnicas de impressão 3D, da cerâmica às peças sonoras; da argila aos cabos; estar “no meio” é um estado inerente ou surgiu mais tarde com experiência?
RR – Vejo esse “estar no meio” como a minha forma de existir no mundo. Como pessoa deslocada, tendo residido na Europa quase metade da minha vida, é um sentimento do qual nunca me livrarei por completo. Além disso, acho que a Internet e os avanços tecnológicos nos fazem sentir a todos um pouco dessa maneira, certo? Mesmo estando fisicamente num lugar apenas, temos olhos em todo o lado, e podemos ser contactados a partir de qualquer canto do mundo – acho que isto alterou a nossa perceção do tempo, espaço e acesso. Estamos sempre a atravessar pontes e fronteiras sem darmos por isso. Uso este movimento constante no meu trabalho, que não só se desloca do passado para o futuro, mas de norte para sul e vice-versa.
MR: Artefactos e objetos antigos, dos períodos pré-hispânicos, são a principal fonte de referência e o ponto de partida para o seu trabalho. Acredita que, ao reproduzir peças alternativas de acontecimentos passados, concebendo novos e personalizados híbridos, podemos invocar outras realidades capazes de nos libertar da violência e opressão da colonização? Ou seja, é possível superar o passado forjando “novos futuros”? Como pode a arte sarar e fortalecer a sociedade?
RR – Encaro os artefactos como detentores da história. Por isso, fascina-me o potencial criativo do mundo deles. Se pensarmos sobre isso, a história, tal como a lemos nos livros, é uma espécie de ficção. Qualquer informação que aprendamos hoje sobre artefactos antigos é uma mistura de factos e especulações infundidas em objetos por parte de historiadores, arqueólogos, etc. Quando olhamos para estes objetos, confiamos na informação que nos foi dada – isso cria uma realidade.
No caso do meu trabalho, os objetos, textos, sons tentam provar a possibilidade da diferença, um convite a imaginar um mundo fora do legado da empresa colonial. A imaginação não é só uma ferramenta poderosa, mas um catalisador para a mudança.
MR – Então o mundo pós-colonial – tal como o conhecemos – é só uma fachada de um sistema colonial moderno? Como lidar com isto?
RR – Sim, diria que aquilo que estamos a vivenciar é algum tipo de colonialismo pós-colonial – a supremacia branca e a rentabilidade capitalista são alguns dos sintomas mais visíveis deste mal-estar. É urgente um elevado nível de consciência a este respeito, sobre como as nossas ações contribuem para a prevalência deste sistema. É vital compreender que, só porque temos feito as coisas de uma certa maneira durante centenas de anos, isto não significa que não haja outra maneira de as fazer. As atuais visões hegemónicas do mundo não são estanques. É possível uma maneira diferente de viver no mundo.
MR – Em relação à forma como vemos o mundo, no trabalho Promises from Paradise (2018) usa cartazes muito atrativos e vendáveis com paisagens peruanas. Isto mostra como a mentalidade capitalista tira partido dos recursos naturais enquanto engodos turísticos exóticos e tropicais. Era esta a intenção por detrás da obra?
RR – A série Promises from Paradise surgiu como resultado de uma viagem que fiz à Amazónia em 2017. Testemunhar em primeira mão toda a estrutura económica construída em torno do consumo da Ayahuasca, ao longo da selva do Peru, teve em mim um enorme impacto.
Fascina-me o poder da planta, compreendo o encanto, mas sinto que todo o “turismo espiritual” se descontrolou, afetando as vidas das pessoas da região. Isto altera a essência deste antigo ritual.
Tinha estas ideias em mente quando produzi o trabalho – a capacidade curativa de algo que parecemos procurar coletivamente, mas, ao mesmo tempo, o desconhecimento dos danos provocados pela nossa busca do ‘enlightenment’. Tudo isto pareceu-me uma enorme contradição e espero que o trabalho ilustre isso mesmo.
MR – Mais recentemente, em Haptic Chant (2022), dezenas de esculturas de barro cozido foram montadas em tijolos de carvão vegetal, numa performance sónica. Será este projeto uma forma simbólica de expressar que os artefactos são verdadeiros detentores da história, a partir da qual podemos alcançar memórias e sentimentos?
RR – Enquanto fazia as peças de cerâmica de Haptic Chant, não parava de me perguntar: e se estes objetos pudessem contar a sua história? De onde vêm, o que viram. Não fazia qualquer sentido para mim ‘traduzir’ o que tinham para dizer em palavras. Afinal, a linguagem como a conhecemos é uma construção humana. Qualquer significado que eu lhes transmitisse seria tendencioso. Assim, concentrei-me em encontrar a forma de libertar as suas ‘vozes’. Ou, neste caso, os sons que vivem dentro delas.
Costumamos sentir-nos extremamente desconfortáveis com o que não conseguimos compreender, muitas vezes ignorando o que à primeira vista parece incompreensível. Assim, de certa forma, ouvir esta performance representa um pequeno desafio – espero que seja um exercício libertador e até expansivo para o público. As experiências curativas coletivas são algo que me interessa muito neste momento. Espero continuar a desenvolver esta vertente no meu trabalho.
MR – O que se segue?
RR – Acabei de concluir uma residência no Amazonas (Peru), onde fiz uma investigação site-specific sobre sítios arqueológicos, artefactos locais, cerâmica tradicional e tradições orais. Também produzi uma série de esculturas modulares com argila forrageada e pigmentos naturais inspirados na região e na sua história. Irei utilizar estes objetos para continuar a minha pesquisa sobre as possibilidades na interação entre técnicas tradicionais e novas tecnologias.
Estou também a preparar-me para uma próxima exposição em Viena, no final deste ano, que me entusiasma muito.