Tony Conrad na Culturgest
A era da pós-verdade, da meta-ironia e do “riso pelo riso” começa a mostrar fissuras na sua fundação. O humor niilista, hedonista, ausente de qualquer fundamento ético, é um meme que se consome num instante, até ao esgotamento. De que vale a ironia sem o seu suporte crítico regenerador? De que vale a sátira sem a transformação social que lhe subjaz, sem a preocupação com a autoridade e as forças hierárquicas que tornam a vida e o quotidiano político numa farsa absurda?
Mas faz parte. Faz parte da condição (pós-)moderna e capitalista, este consumo despreocupado com as coisas do mundo, desde que entrem na mesma lógica do sistema vigente, alimentado por redes sociais e algoritmos que vivem das idiossincrasias daqueles que o compõem. Todos integramos, afinal, a Sociedade do Espetáculo, com os media e as redes digitais sociais a suportarem o regime capitalista vigente; todos integramos o panótico foucaultiano da segurança vigilante.
Vem isto a propósito da exposição de Tony Conrad na Culturgest, um artista, cineasta e músico que desafiou sistematicamente as noções de autoridade, autoria e hierarquias, numa época antes de tudo ser prefixado com um “pós-“, antes da pós-ironia, antes da pós-sinceridade. Para tal, Conrad recorre ao humor e aos jogos conceptuais e linguísticos, trabalhando a tecnologia e o tempo como matérias de um capitalismo que então entrava em aceleração desbragada. Ao invés de utilizar as mecânicas da ironia, da sátira e do humor para lá da vida do mundo, Conrad vê neles um poder transformador, capaz de esclarecer os processos insidiosos que governam e administram o nosso quotidiano e as instituições que o conformam.
A peça inicial, instalada no foyer da Culturgest, Studio of the Streets (1991-93 / 2012), prepara-nos para a sua verve iconoclasta, ativista, combativa e marca o compasso para toda a exposição, ao tentar descodificar os media norte-americanos para dar voz àqueles que não se encontram neles representados. Mas a morfologia da peça, instalada em contexto museológico, poderá ganhar outros contornos e, assim, atingir o Museu enquanto instituição (supostamente) democrática e democratizante. Tal como o Museu, esta é, para todos os efeitos, uma obra em construção, de cones e barreiras de sinalização, carrinho de mão, terra e letras e painéis vinílicos. Da mesma forma que a democracia obriga a um esforço continuado de trabalho e empenho, também os media e os museus precisam dessa energia e fôlego que os obrigue a rever processos, formas de representação e inclusão e os métodos pedagógicos que lhes são inerentes. Neste contexto, e considerando esta extrapolação, não é só a neutralidade dos media que é aqui escalpelizada e investigada, mas também a dos Museus.
Em Tony Conrad, o vídeo é omnipresente. É o vídeo que liga o forte conceptualismo da sua materialidade e dos dispositivos às questões da Modernidade ou da Contemporaneidade. É o vídeo que serve de arma de arremesso contra os já referidos media, mas também contra as estruturas militares, a sociedade e as políticas da vigilância e da segurança, e as questões da autoria. As mecânicas do vídeo, das películas, de toda a parafernália de instrumentos e linguagens a que recorre, são usadas na contrafação de signos e significados: películas de filme são embebidas em frascos de conservas e transformados em pickles; folhas de papel cenário são pintadas com tintas de esmalte, como se de telas de cinema se tratassem, para aguardarem, depois, a medição da passagem do tempo, com o amarelecimento da tinta; a tecnologia da videoarte é decomposta para Conrad gozar com a própria videoarte – enfim, tudo entra numa economia de meios que devolve a agência criativa e crítica ao comum cidadão.
Este experimentalismo radical está igualmente presente nas peças musicais. Na verdade, o percurso da música experimental nova-iorquina passa, sem dúvida, por Tony Conrad. Desde logo a primeira sala, na qual se pode ouvir Four Violins (1964), uma peça em tom contínuo, que dispensa composição, naturalmente essencialista por mais não ser que, simplesmente, som: uma nota apenas, tocada em num loop infinito, hipnótico, capaz de nos deixar num estado de transe. Four Violins, sublinhe-se, situa-se no início da chamada música drone, das intonações puras e dos sons sustentados, habitualmente traduzida como “música do sonho”.
Mas as experiências com a música e o som não se quedam por aqui, e a exposição mostra ainda um assinalável ensamble de instrumentos concebidos pelo artista, construídos com materiais baratos e de uso corrente. Tudo tem uma sonoridade própria, um ritmo, uma entoação. Tudo é suscetível de ser usado para gerar som. Tudo serve de matéria para a improvisação poética, preconizada por essa economia de meios defendida pelo artista.
A exposição termina com uma nota vagamente lúgubre. Underwear (2009) é uma série aparentemente cómica, mas todo o humor é substituído por uma inelutável melancolia quando revelado o contexto das peças: Conrad estica roupa interior de algodão e prende-a em quadros de cortiça; no meio da sala, uma cancela semelhante àquelas usadas em lares de terceira idade. Algumas cuecas parecem amarelecidas com o tempo: novamente a medição do tempo, desta vez com os véus do corpo vergado à incontinência, à biologia, à flacidez. O derradeiro ataque, aqui desferido aqui por Conrad e pelo curador, Balthazar Lovay, é à velhice, à sua inevitabilidade, e à doença. É o fim da vergonha e da dignidade. Os quadros e as cuecas apresentam-se sem qualquer espécie de pundonor, querendo dizer algo como: “aqui está o corpo velho. Vejam. Cá chegarão. O corpo é isto, a velhice é isto: manchas de fezes e urina; corpos que nem pedras, a aguardar um desfecho mais que óbvio”.
Tudo nesta exposição é política, como tudo na vida é política. E a vida é cómica. E trágica. Uma ironia trágica.
Tony Conrad, na Culturgest, até 3 de julho, com a curadoria de Balthazar Lovay.