Onde está o que não está – Exposição coletiva no gaat
Uma cortina vermelha esconde e anoitece o interior do gaat, que recebe até o dia 27 de maio de 2022 a exposição Tudo o que é estranho… Com curadoria de ignoranciala, o material de divulgação conta com os nomes e respetivos países dos artistas convidados, além de dizer: “A invocar: Sebastian A. Restrepo”. Atraída por essa informação, me perguntei o que significaria este: “A invocar”. O aspeto ritualístico e misterioso da frase se expande na exposição.
Uma torre de madeira projeta em sequência as peças de vídeo dos cinco artistas – Astrid Gonzáles (Col), Gabriel Siams (Br), Maria Angélica Madero (Col), Rita Lino (Pt) e Rodrigo Moreira (Br). Lembrando uma espécie de torre de transmissão dos centros urbanos, o Aparato é uma referência à Lenin Tribune (1924), de El Lissitzky e assinala a dimensão que acompanha a narrativa da exposição. As rodas na lateral apontam que aquela é uma estrutura móvel, que se desloca. Com algumas pistas a seguir, Tudo que é estranho… tem camadas que não são percebidas à primeira vista. Uma coluna de som vermelha e portátil acoplada ao Aparato é também um ponto de interconexão, quando pensamos na simbologia do objeto no contexto da cultura latino-americana ou, como muitas vezes acontece, as casualidades se provam determinantes. A autoria curatorial ressalta a potência discursiva que acompanha a exposição, trazendo a presença do curador também enquanto artista e abrindo espaços de reflexão entre relações e signos subliminares.
A primeira Aparição é Historia del misterio (2019), de María Angélica Madero. Várias espécies constituem o ser híbrido que gravita em torno de si na escultura digital. Mesmo com a visão completa da criatura desconhecida, permanece a sensação de que há ali alguma natureza escondida. A seguir, em Vocabulary (2017), Rodrigo Moreira apresenta um breve e ilustrado curso de português para estrangeiros, frases essenciais na comunicação da língua portuguesa aparecem sobre imagens, fatos históricos e personagens da cultura brasileira. A ironia de Vocabulary (2007) revela rastros coloniais, estigmas do olhar internacional sobre o Brasil e fantasmas não tão distantes. Pronunciar perejil en la masacre (2021), de Astrid González, também trata da linguagem. Não enquanto ferramenta de aproximação, mas como instrumento de discriminação e extermínio quando na República Dominicana (1937) de Trujillo levou mais de 20 mil haitianos à morte. Como um filme de terror, em eerie (2020) também a estranheza se complementa com o som. A caminho de perder-se na escuridão, a inquietude de Rita Lino é interrompida com o inesperado corte para Lying on his deathbed (2021) de Gabriel Siams, que dilata o tempo instante entre a vida e a morte. Na ação de forças invisíveis sobre o corpo[1], a última das Aparições deixa um vestígio.
A presença do vermelho – na coluna de som, na cortina e no sangue de Lying on his deathbed (2021) – atrai novamente o olhar. Em casus (2017), de Sebastian A. Restrepo (Col), uma luminária vermelha aponta para as páginas abertas de um livro do artista instalado na parede. A cor ambienta-se ali na companhia do fogo – uma vela acesa por outro ser híbrido – e nos escritos daquele que está a invocar e a ser invocado.
Sebastian A. Restrepo sumiu em Medellín há um ano, quando saiu para caminhar na reserva de San Sebastián La Castellana. Antes disso, apagou grande parte dos seus rastros digitais, o que não pareceu estranho uma vez que acontecia com alguma frequência. A preocupação inicialmente variava com a possibilidade de o desaparecimento fazer parte de um trabalho ou performance, já que a pesquisa e outras peças do artista tratam do assunto, como Algunos Casos Sobre la Abducción, de 2019. Sebastian nunca mais foi visto e segue desaparecido. Isso não é dito na folha de sala ou na exposição, senão através da oralidade.
Por último, APARATO itinerante é o registro das cinco Aparições na mais recente ação em que a vídeo-instalação ocupou o espaço urbano. Um chamado à origem da exposição que deixa reticências. Tudo o que é estranho… trata do que não é dito, mas está ali. Muitas vezes isso é o que importa. O encontro entre a arte e a vida manifesta-se nos seus mistérios – o que está por trás da cortina – que podem ser assustadores ou acompanharem camadas com as quais não queremos nos deparar. Mas, “e se o mistério iluminar e é por isso que os fantasmas são espectros de luz?”[2]
Tudo o que é estranho… é um fantasma.
[1] Deleuze sobre o espamo em Lógica da Sensação.
[2] ignoranciala; Folha de sala.