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Uma História Pouco ou Nada Natural

Do lado de cá do vidro vê-se, através do reflexo azul, a cara a contorcer-se. Do lado de lá, ele continua imóvel. De boca aberta, dá para contar todos os dentes das várias fileiras. Os tubarões têm em média 50 a 300 dentes.

Este entitula-se Death Denied (2008), uma versão mais pequena do famoso The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living (1991). Damien Hirst tem por norma presentear as suas obras com títulos mirabolantes que sobrepõem camadas de significado por vezes mais profundas que a representação visual da obra. O título é parte intrínseca como em qualquer bom conceptualista.

A morte foi com certeza negada pelo próprio, pois a vivacidade com que parece querer sair do tanque na nossa direção é assunto que tem que ser mentalmente revisto pelo espectador de modo a certificar a própria segurança.

Natural History, como diz a folha de sala, é a primeira exposição dedicada aos trabalhos inovadores de Hirst que usam formaldeído. O texto prossegue, com foco no líquido azul viscoso e pouca atenção nos animais, mencionados como materiais nas legendas das obras. Vidro, aço pintado, silicone, acrílico, vaca, solução de formaldeído.

A exposição é pouco sobre ambientalismo e direitos dos animais e mais sobre o despoletar intenso de emoções. Mesmo em The Beheading of John The Baptist (2006), uma cena de matadouro em que a cabeça da vaca descansa sobre uma mesa, enquanto o resto do corpo jaz no chão. Natural History invoca sentimentos de terror, repulsa, tristeza. É um turbilhão de emoções. Bifurca-se a vontade de querer e não querer olhar, cuja curiosidade ganha na examinação total dos corpos anormalmente inertes.

Enquanto que as criaturas flutuam nos seus caixões de vidro, o olhar temoroso passa de animal desventrado, a escalpado, a geneticamente modificado, a salsichas. Existe um conforto desconfortável na carne, nos animais sem cabeça e nas costeletas. Revolta-me a ideia de ser por hábito, que o tubarão intacto seja imagem mais aterrorizante que um carneiro sem pele de cabeça por encontrar.

(Relato que cabeça foi encontrada mais tarde em Analgesics (1993). Vidro, silicone, acrílico, cabeça de ovelha, solução de formaldeído.)

Toda a situação é quase irrisória, uma descrição demasiado disparatada para não ser real, o cenário cai entre um laboratório macabro e um inferno anti-séptico. Natural History, é uma experiência única, mas não para um estômago leve. A minha curiosidade dispersa levou-me a descobrir que as peças são desmontadas e separadas para envio cada vez que viajam. Primeiro tanque, depois animal e finalmente líquido altamente tóxico que conserva cadáveres. Muitas das peças não vieram de coleções, o que me leva a perguntar – Onde será o armazém dos terrores que alberga tal coletânea?

Um Hades dos tempos modernos, Hirst relembra-nos que é “estúpido” não olhar para o inevitável. “Eu fui ensinado a confrontar coisas que não posso evitar. A morte é uma dessas coisas.” A efemeridade das flores confere-lhes beleza, a efemeridade da vida confere-nos vontade.

No diálogo corrente, o conceito de sublime é tendenciosamente associado a um sentimento positivo. No entanto, na estética do século XVIII de Burke e Turner está relacionado com a admiração do terror, da vastidão e do desconhecido quando em segurança. Hirst é um sublime artista contemporâneo, poucas são as visões atuais que causam sentimentos tão viscerais, o arrepio na coluna e as rugas na testa. O artista fala dum “universal trigger”, uma impossível indiferença e do poder que tem o conceito de universal. A vida é também sublime.

Exposição patente na Gagosian Gallery em Londres por tempo indefinido.

Licenciada em Belas-Artes pela Universidade de Lisboa, com um pé em Londres e o coração em Lisboa, atualmente trabalha numa galeria de arte no Reino Unido. Depois de passar pelo mundo da moda, reviu o seu maior interesse na arte. É co-fundadora do Coletivo Corrente de Ar, que se foca na promoção de artistas emergentes e na democratização da Arte Contemporânea. O seu trabalho desenvolve-se em torno da curadoria, da consultoria de arte e da escrita.

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