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Seres Imaginários na Galeria Carlos Carvalho e Álbum de Família na Appleton [BOX] – Carla Cabanas

Seres Imaginários, Carla Cabanas, Galeria Carlos Carvalho

Quatro estruturas feitas de tubos dourados longos, que encaixam uns nos outros, formam, como que, pequenas aranhas, ou sinuosos satélites, pousados na memória, ou em planetas distantes.

Sobre essas estruturas douradas assentam, de modo irregular, mantos tingidos com imagens oriundas da infância da autora, ou álbuns de família.

Memórias bucólicas e perdidas no tempo, que não cessa, e não pára, com as suas grandes hastes, e tentáculos, que vão amarrando a existência, e expelindo-a da vida.

Nesta exposição Seres imaginários, convoca-se a atenção para um álbum de família diferente. Os longos mantos cobrem os tubos envelhecidos, mas fulgentes, em posições meticulosamente escolhidas pela artista Carla Cabanas. De um dos lados destas vestes somos acometidos pelos rostos contemplativos de crianças que parecem olhar para uma mesma direção, do outro, descobrimos nichos de paisagem. Estariam a olhar para o mesmo lugar? Contornando a peça escultórica, o manto revela também outro ângulo da fotografia. Podemos observar a nostalgia de uma casa de férias? Feita de mesas basculantes, cobertas com os seus televisores portáteis de gosto bulboso,  a evocar o plástico expandido dos anos 70? Em outras faces, porque cobrem as estruturas nas mais variadas posições, os mantos deixam revelar fragmentos arquitetónicos, num apontamento warburgueriano, de um qualquer edifício histórico.

Se lermos “O livro dos seres imaginários” de Jorge Luís Borges, livro que serviu de referência para esta exposição, reconhecemos nas estruturas esguias das obras da artista um certo efeito caleidoscópico transformador, de que o filósofo faz alusão, assim como a linha, o plano, e o hipercubo. As peças douradas, e fantasmáticas, dispostas na ampla sala da galeria, parecem sugerir pequenos fragmentos dessa realidade quadridimensional. Como se, nas palavras de Borges, percorrêssemos “um lugar alto onde pudéssemos vislumbrar uma maravilhosa paisagem do mundo, e onde, num longo terraço circular nos fosse autorizado comandar uma clara vista do horizonte, a toda à sua volta”.

As imagens intervencionadas de Cabanas, parecem ser, um esquadrinhar sobre as memórias, que se transformam com o desvelo dos dias, e que se modificam à medida que a vida vai disferindo os seus golpes. É uma questão de tempo, e de movimento. E, por isso, torna-se necessário reinventar os dias – talvez uma catarse – e o olhar sobre o eu.

Porém, é sobre as estruturas tubulares que demora o olhar. Já maceradas pelo tempo, sustentam, de modo rúptil, a época em que foram produzidas as imagens. Quem viveu esse tempo, é-lhe familiar o material que é usado. Numa poética antropológica, e arqueológica, a matéria também documenta uma época, ou um tempo. Agencia-se a ela.

A artista usa álbuns de família mas recria as suas próprias memórias, evoca as nossas, ou até inquieta-nos. Obrigando-nos a lidar com o passado. Talvez por isso também nos convoque para um olhar sobre nós mesmos. E nesse exercício, serão desvendadas mágoas ou alegrias?

Como nos diria Merleau-Ponty, “eu não sou o espectador, estou envolvido, e é o meu envolvimento, num certo ponto de vista, que torna possível tanto a finitude da minha perceção como a sua abertura para o mundo completo como horizonte de toda a perceção”.

Na urdidura dos dias, tal como nas cascas das árvores, também podem surgir os nós que sublimam a vida. Os nós que são como que um testemunho material de que as árvores justamente sublimaram as suas dificuldades, e as agruras das intempéries.

Há memória na matéria. Nas “intervenções sobre prova de gelatina e prata”, obras realizadas por Cabanas, entre 2010 e 2013, podemos observar a acumulação de fragmentos crepusculares de papel que tombaram na base das molduras, quando a artista raspou na superfície de fotografias, que retratavam pessoas anónimas.

As fotografias da presente exposição são igualmente intervencionadas, mas a raspagem é substituída pela técnica de kintsukuroi, como modo de reparar memórias ou vesti-las de novas roupagens.

A artista vai assim, modelando corpos, ou ocultando rostos, íntegra ou parcialmente. Com a linha dourada, e de modo paciente, vai desenhando sobre as suas superfícies, seres mágicos. Cobrindo-os de texturas enigmáticas.

Álbum de Família, Carla Cabanas, Galeria Appleton

A sala onde se encontra a exposição Álbum de Família, de Carla Cabanas, apresenta-se envolta em penumbra. É preciso esperar por breves instantes, até o olho humano se acostumar aos leves recantos que definem a forma quadrangulada do seu espaço.

Primeiro descobre-se, ao longe, pontículos luminosos, de cor dourada, dispostos ao longo de um plano retangular, horizontal negro, pendurado sobre a parede.

A pouco e pouco o olhar vai descriminando um assento diante da peça, que convida a sentar. A obra pede uma atenção demorada.

Já próximo apercebemo-nos de que os pequenos pontículos são afinal fragmentos coloridos conseguidos pelos cortes desferidos na superfície de fotografias.

Tal como na exposição, Seres Imaginários, evoca-se o tempo e a memória. Entrevê-se a contemplação de um céu maravilhoso de estrelas, mas um céu onde a presença da luz, já se intui pela sua ausência. Apenas o rasto do passado, dos afetos se perscruta. Volatizam-se rostos, sorrisos, olhares, por breves instantes.

De novo a aparente aleatoriedade. A desordem opõem-se à ordem natural das coisas, e revela a sua transitoriedade, a sua irregularidade, a desagregação da matéria. Era Leonardo de Vinci que exclamava: “O movimento é o princípio de toda a vida”.

Os pontículos luminosos da obra de Cabanas evocam o binómio cinemático, movimento-tempo. Matéria a fluir que, segundo Huyghe, ao contrário da ordem, não exerce oposição sobre o fluxo, aceita-o, aceita a sua transformação: “uma ordem que se sustenta, que se imagina, segundo um princípio de modelo fixo, imutável, e que resiste contra o tempo e as suas ações”.

Somos assomados por um sentimento de impotência face à inelutável erosão do tempo. Consciencializamo-nos do que de facto “sobra do pó que resta”, como escreve Ricardo Escarduça, na folha que acompanha a exposição. Confrontamo-nos com o irremediavelmente perdido, e que a artista tão bem materializa ao sulcar a fotografia, ferindo-a e pondo a nú a ausência dos que amamos, a sua finitude, assim como a nossa.

Seres Imaginários está patente na Galeria Carlos Carvalho até ao dia 21 de maio. A exposição Álbum de Família na Appleton [BOX] terminou no dia 30 de abril.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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