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Festival Sónar em Lisboa, uma relação que começa agora

O Sónar nasceu em 1994 em Barcelona pelas mãos de Ricard Robles, Enric Palau e Sergi Caballero. Trata-se de um festival de artes, design, música eletrónica e experimental. O festival já acolheu eventos em Buenos Aires, Bogotá, Tóquio, Hong Kong, Reykjavik e Istanbul. Lisboa foi palco pela primeira vez deste grande evento e será a cidade que nos próximos cinco anos o irá acolher, como refere Patrícia Craveiro Lopes (uma das parceiras portuguesas do festival) em entrevista ao Expresso por Rui Miguel Abreu. O festival divide-se em duas partes: Sónar by Day e Sónar by Night. O Sónar +D é o congresso internacional do Sónar Festival que “explora a criatividade como força motriz da mudança do séc. XXI.” Divide-se em exposições, conversas e espetáculos AV. Este texto foca-se nas exposições do Sónar +D e comenta o festival como um todo.

Escrevi já sobre a minha experiência musical no Sónar (não aqui, mas noutra revista) sem, no entanto, ter abordado o festival no seu todo. Agora que escrevo sobre o Sónar +D, não queria perder essa oportunidade. O festival Sónar afirma-se como um festival de vanguarda que promove o encontro entre a arte e a tecnologia. É uma referência incontornável no mundo da música eletrónica, por exemplo. O Sónar +D, muito menos conhecido pelo público, não tem por isso menos qualidade que o resto do festival. A sua programação é igualmente entusiasmaste.

As exposições tiveram lugar no Hub Criativo do Beato. Os espaços expositivos espalhados por vários edifícios ocupavam diferentes instalações, como, por exemplo, a sala das máquinas da Fábrica de Moagem. Alessandro Cortini realizou nesta sala a instalação Nati Infiniti. Esta instalação foi concebida especificamente para o Sónar. Cortini instalou várias colunas ao longo dos quatro pisos do edifício da Fábrica de Moagem. O som que saía das colunas era o de uma atmosfera sonora bastante imersiva e a iluminação arquitetónica respondia ao som das colunas. Nati Infiniti é uma instalação que trabalha a volatilidade e as constâncias da propagação do som no espaço. A instalação conjunta entre a ArtWorks e o coletivo berru tem também que ver com o som. Tal como a instalação anterior, Object Memory foi feita a convite do festival e foca-se na exploração de memórias sonoras e ecos industriais. Consistia numa placa de ferro com dezoito metros de comprimento e dois milímetros de espessura erguida horizontalmente. Esta placa de ferro reproduzia sons criados pelo artista e músico João Polido Gomes. A Artworks é uma organização dedicada à produção e desenvolvimento de instalações artísticas. O coletivo berru é o atual residente do programa No Entulho (programa de residências organizado pela ArtWorks). Esta obra explora a forma como a memória é criada na nossa realidade cada vez mais digital, mas também como este processo é moldado pela relação da humanidade com as máquinas. É ainda de salientar a obra de Francisco Vidal: Casulo – Still Free. O artista foi desafiado pelo Sónar a descobrir uma maneira de mergulhar a audiência recorrendo à realidade virtual. Este trabalho conta com a colaboração dos músicos Beat Laden e Xullaji, foi programado por André Louro, a cenografia é de Mica Costa e a fotografia de Nhadimnelo. Esta obra flui entre o desenho, a escultura, a música (spoken word) e a arte digital. Recorrendo à metáfora do casulo e da borboleta, esta peça assume a forma de uma instalação que é imersiva tanto de uma maneira tecnológica, como não-tecnológica. O casulo é feito de feltro e simboliza a proteção, ao passo que a experiência de realidade virtual é a borboleta. Nas palavras de Francisco Vidal, “qualquer não-lugar em qualquer porto de transporte, paragem de autocarro, estação de comboios ou aeroporto pode ser um espaço de libertação e metamorfose.”

Estiveram também expostas as obras The Murder of Pablos Fossas de Forensic Architecture, Nine Earths de D-Fuse, News Feed 2022 de Rudolfo Quintas, Induced Theorems & Wordly Conjectures or How to get trapped in a loop de André Gonçalves, Alter Ego de Cadie Desbiens-Desmeules, Wetland de Cláudia Martinho, Synthetic Messenger de Tega Brain e Sam Lavigne e Earthworks do duo artístico Os Semiconductor (Ruth Jarman e Joe Gerhardt).

A estética de espaços industriais abandonados é uma tendência em grandes eventos de arte contemporânea como este. Espaços que nada têm que ver com o mundo da arte apelidados pelos seus agentes como não-convencionais. Pergunto-me se o público do festival, em particular do Sónar +D, sabia da história do Hub Criativo do Beato. Encontrei pouquíssima informação sobre o contexto histórico e social deste lugar. Nas legendas das obras, estavam apenas designados os nomes das antigas fábricas e a que tipo de indústria pertenciam. Antes deste edifício ter um estrangeirismo no nome, era o lugar onde funcionavam várias fábricas. Os bairros de Marvila e do Beato sempre foram zonas populares de classe operária. Hoje em dia, esta classe foi substituída por digital nomads e aquilo que outrora eram fábricas são startups e espaços de co-work. O Sónar +D ocupou as antigas fábricas de Moagem, Massas, Bolachas, Pão e a antiga Confeitaria. A importância de um festival como o Sónar na cidade de Lisboa é inquestionável. A rede de contactos internacional entre agentes culturais e artistas é muito enriquecedora para a cultura da cidade. Porém, o público deste festival não é da cidade, ou pelo menos a sua grande maioria. As condições de acesso e a sua reputação internacional fazem com que o público do festival sejam jovens de classe média alta estrangeira. Para a maioria dos jovens da grande Lisboa, é impossível pagar o preço dos bilhetes. A título de exemplo, o pass geral que dava acesso a todos os eventos e espetáculos do festival custava 150€. Poderá sempre ser argumentado que é o valor justo tendo em conta a quantidade e a qualidade dos eventos e espetáculos em si, é certo. No entanto, o resultado desta estratégia tem necessariamente que ter um público capaz de o suportar, e esse não foi nem nunca poderia ter sido as pessoas que moram na cidade. O festival falha nestes dois aspetos: na contextualização social e histórica dos lugares que ocupa e na não-inclusão da comunidade local como seu público alvo.

Rodrigo Fonseca (1995, Sintra). Estudou na António Arroio, é licenciado em História da Arte e mestre em Artes Cénicas pela FCSH/UNL. Foi cofundador da editora CusCus Discus e do festival Dia Aberto às Artes. Além da Revista Umbigo, faz crítica musical na plataforma Rimas e Batidas. É técnico de som especializado em concertos e espectáculos e artista residente da associação cultural DARC.

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