Entrevista com Isabel Cordovil, autora da capa do mês da Umbigo
Mafalda Ruão entrevista Isabel Cordovil, autora da capa do mês da edição online da Umbigo, explorando grande parte do seu corpo de trabalho, aquele que materializa um convite ao diálogo e, através da irreverência da sua voz, revela-se como tentativa de resposta às estruturas de poder.
Mafalda Ruão – Vês-te como uma artista com uma faísca ativista ou preferes não categorizar a tua prática artística?
Isabel Cordovil – Acredito que toda a arte é política. Esta crença já é, por si só, uma categoria.
MR – Leio o teu corpo de trabalho como uma resposta às estruturas de poder atuais. Consideras que o mesmo se materializa como uma investigação crítica ou pode ser, mais ainda do que essa voz alternativa, uma forma de intervenção, um gatilho de mudança com origem no mundo da arte?
IC – Não sou ingénua ao ponto de achar que a arte possa mudar alguma coisa, a não ser no indivíduo que já se disponibiliza para isso. O meu trabalho talvez seja, por vezes, uma declaração e um convite ao diálogo sobre essa disponibilidade.
MR – Martin Luther King Jr disse-o em 1963 “Freedom is sure to be attained by all once we truly get that the freedom that we enjoy must be given to everyone.” Suponho que este tenha sido um dos principais pontos de partida e de referência para a obra Free at Last. Acreditas que, ao reproduzir imagens alternativas de eventos históricos, podemos invocar uma nova realidade e nos libertar, metaforicamente, da violência e da opressão? Qual a motivação essencial por trás deste trabalho?
IC – Foi exatamente a partir desse discurso (entre outros dentro da mesma luta) que surgiram algumas ideias para estudos de remoção dos corpos de situações imagéticas, sem consentimento. Andava a ler o Regarding the Pain of Others da Susan Sontag e a associar todas as imagens que faziam capas (extremamente ventáveis) da revista Time ou dos telejornais da noite a uma engrenagem produtora de “História” pela repetição das mesmas imagens. A propaganda tem sempre um pulso emocional e aqui era claro. O que fiz não é tanto uma metáfora para a uma liberdade alternativa, é mais uma tentativa de criar um glitch na reprodução desenfreada de uma mesma imagem, na qual as entidades (que não consentiram ser marcos para um certo discurso narrativo na “história” contemporânea da humanidade) já lá não estão.
MR – No trabalho Empire Dreams (comfortably defeated) recorres a metáforas simples e poderosas. O trabalho impressiona pela sua delicadeza crua, de ressonante significado. É ele uma forma simbólica de expressar a tua necessidade consciente de adormecer o imperialismo mundial e, assim, descolonizar as narrativas de poder?
IC – Acrescento que ao fazer este trabalho estava mais importada em descolonizar as minhas narrativas pessoais; adormecer as ideias infantis de grandeza ou símbolos imperiais dentro de mim própria. Vejo esta coluna no colchão como um trabalho coming of age. Quem viu a peça fisicamente sabe da racha que o mármore tem (quase impercetível nas imagens). Agrada-me também pensar que o mármore tem consciência de classe. Mas acima de tudo é um objeto que não cumpre o seu propósito simbólico da mesma maneira que um filho tem a liberdade de não cumprir os desígnios dos seus pais (ou do seu país).
MR – Um dos teus mais recentes trabalhos, intitulado Current strongest investments from the Vatican in the stock market, retrata uma batina eclesiástica com logótipos corporativos bordados, uma obra que permanece de pé, literalmente, e sem palavras. Interpreto-a como forma de apontar a indiferença e o abuso do poder político e económico por parte da igreja institucional. Note-se que, depois da invasão russa ter começado, o comentário do Vaticano tornou esta situação ainda mais visível – quando a Igreja Ortodoxa deu a sua bênção à violência do governo de Putin, ao valer-se de uma retórica que defendia que a guerra advinha de uma responsabilidade aparentemente universal, com o seu “we are all guilty”. Qual é a intenção por trás deste trabalho? Podemos nós, por meio de intervenções artísticas, abrir os olhos das pessoas para as várias formas de cegueira e devoção em nome da fé e de outras ideologias?
IC – Eu nasci e cresci num meio muito religioso, isso torna-se evidente em alguns trabalhos, julgo. Ao crescer apercebi-me das afinidades entre organizações políticas (como a Igreja) e certas empresas, e como tudo isso alimentava um sistema que distribui bênçãos para um lado e perdões para outros de um modo criminoso (por exemplo: pedofilia, exploração louca de petróleo, desvio de fundos humanitários…). O gesto neste trabalho foi simplesmente dar imagem a esses contratos com a mesma clareza com que a Fórmula 1 o faz. A fonte para as informações foram os Vatileaks revelados em 2011.
MR – O teu trabalho apresenta um cariz muito contextual. Estando nós a viver tempos tão efervescentes, podes partilhar connosco o projeto no qual trabalhas neste momento?
IC – Neste momento ando a preparar a minha exposição debutante na Uma Lulik com o meu coração inteiro. É um grande privilégio ter o apoio da galeria que me dá um grande voto de confiança. Posso partilhar que grande parte dos gestos se têm focado no objeto performativo que procura documentar sem limitar.
A grande fonte da minha prática é o diálogo e a partilha, gostava de deixar um convite aberto a visitas ao atelier, que partilho com o brilhante Rudi Brito, para quem quiser beber um chá frio ou conversar sobre esta coisa estranha e maravilhosa que é estar vivo.