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Polka Dot Brain e Sobrevoo: António Olaio e Rita Gaspar Vieira na Galeria Belo-Galsterer

Os mundos de António Olaio e Rita Gaspar Vieira cruzam-se agora na Galeria Belo-Galsterer. Com uma sala destinada a cada um, Rita Gaspar Vieira apresenta Sobrevoo e António Olaio mostra Polka Dot Brain. Os dois artistas acabaram ainda por trabalhar em conjunto na obra Upstairs, Downstairs (2022).

Rita Gaspar Vieira inicia a exposição logo no hall de entrada da galeria Belo-Galsterer com a obra Modos de usar (2022), uma instalação composta por duas peças de papel de algodão suspensas na parede em dois fragmentos de madeira de pinho. As folhas em papel de algodão são circulares e ambas têm uma perfuração no centro que possibilita estarem ancoradas em cada tronco de madeira. O papel de algodão apresenta sinais de um manuseamento intensivo, as práticas nele ocorridas são visíveis. Existe história, rastos de líquidos e rugas. O uso de água sobre as superfícies que trabalha é determinante na prática artística de Rita Gaspar Vieira, ela que muitas vezes recorre também à produção do próprio papel de algodão que utiliza. De acordo com a legenda da obra Modos de usar (2022), o papel aqui utilizado foi manufaturado sobre esteiras do Moinho do Papel de Leiria, de onde a artista é natural. É de realçar que o Moinho do Papel ficou conhecido por ter sido o primeiro edifício onde funcionou a primeira fábrica de papel em Portugal, onde Leiria foi uma região pioneira na produção de papel e na arte de imprimir (topografia)[1]. Rita Gaspar Vieira prolonga o legado da topografia, misturando-a com o desenho, com a instalação. A história deste papel e as marcas que apresenta, prendem-se ao local onde foi trabalhado e ao simbólico da sua terra natal.

Na primeira sala, é apresentado outro objeto semelhante, também manufaturado sobre a esteira do Moinho do Papel de Leiria e novamente suspenso num pedaço de madeira, só que aqui foi preso a uma placa MDF que reproduz as dimensões da porta de entrada da Galeria Belo-Galsterer. Rita Gaspar Vieira parece carregar consigo todos os lugares por onde passa.

Os sobrevoos acontecem também nesta sala, com duas obras que quase se espelham em extremos opostos da sala. Do nosso lado direito temos Sobrevoo 3ª aproximação (2021) e do lado esquerdo Sobrevoo 2ª aproximação (2021). Nestas obras, as prateleiras antigas do atelier da artista servem de suporte para o papel de algodão trabalhado afixado sobre elas; colocadas na parede de forma mais ou menos linear, em cada uma delas foi pendurada uma folha de papel de algodão trabalhado, nas mesmas dimensões. As marcas no papel de algodão mostram os vestígios e irregularidades das prateleiras do atelier da artista, sobre as quais o papel foi manufaturado. O processo de imprimir um lugar no papel acontece novamente, num exercício onde é evidente a repetição do processo, o contínuo manuseamento do papel, e a necessidade de eternizar as rugas de um lugar (o seu atelier) numa folha de papel. Mais do que desenhar pormenores dos lugares que lhe são íntimos, Gaspar Vieira, imprime sobre o papel a sua presença nesses lugares, como um registo da performance que exerceu sobre o papel naquele espaço ou, o seu sobrevoo sobre o espaço.

Enquanto sobrevoamos por Rita Gaspar Vieira, faz-se ouvir uma música que provém da sala de António Olaio, a sensação é de viagem, talvez nostalgia. A canção é de António Olaio em pareceria com Richard Strange; chama-se Polka Dot Brain e parece ter sido o mote para o desenrolar de todas as outras peças presentes na sua mostra. Olaio canta:

If I had a polka dot brain,

A polka dot life, a polka dot sight

What would become of my world? What would become of me?

Breath without breathing, life without living

What would become of me?

 A sua voz pesada e reflexiva ecoa por toda a galeria e a claridade das suas palavras aumenta assim que entramos na sala dedicada ao seu mundo. Na poção que realizou para compor a sonoridade musical e a sua voz, Olaio parece ter adicionado duas chávenas de Pet Shop Boys e uma de Nick Cave. Na exposição está presente o videoclipe da música; teatral, dramático e pop, o rosto de António Olaio aparece sobre um fundo negro em contraluz.

Ainda pelo meio audiovisual, o artista mostra num pequeno ecrã um vídeo que exalta melancolia, onde o próprio vagueia por uma casa recheada de antiguidades; pega em molduras, velas, copos, talheres, acende o fogão, abre o frigorífico, levanta e fecha a persiana, e pega numa soqueira que a câmara mostra em pormenor (que origina também uma pintura deste frame).

A aura soturna de Olaio alastra-se para as pinturas e desenhos que preenchem esta sala, sempre em tons de cinzento; as telas e desenhos são circulares, e neles incluem-se palavras (por vezes excertos da letra de Polka Dot Brain), olhos, silhuetas, elementos naturais, pássaros, e outras formas abstratas, onde tudo parece ser feito da mesma massa moldável que organiza o universo nonsense de António Olaio. Entre o absurdo e o existencial, Olaio desconstrói uma série de expectativas que o público de arte contemporânea normalmente carrega.

As mostras de ambos culminam numa obra coletiva presente no hall de entrada da Galeria Belo-Galsterer. Upstairs, Downstairs(2022) parece uma maquete para uma exposição num espaço com dois andares. Neste lugar imaginário, vemos duas pinturas que pertencem ao universo de António Olaio e uma faixa de papel de algodão de Rita Gaspar Vieira que percorre ambos os andares, acabando por ficar suspenso no ar quando ultrapassa a perfuração feita na base do último. Aqui os artistas “fazem convergir sentidos do olhar e do pensamento, sem procurar alcançar unidade ou consenso”[2].

Polka Dot Brain e Sobrevoo estão patentes na Galeria Belo-Galsterer até ao dia 30 de abril de 2022.

[1] Sobre o Moinho do Papel de Leiria: https://www.cm-leiria.pt/areas-de-atividade/cultura/patrimonio-e-museus/museus/moinho-do-papel/breve-historial

[2] Excerto presente na folha de sala da exposição

Laurinda Marques (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

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