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Entrevista a Jorge Reis sobre o espetáculo OBSCURUS

Estivemos à conversa com o curador e criador Jorge Reis a propósito de OBSCURUS, a sua primeira criação em artes performativas. Este espetáculo trata-se de um trabalho multidisciplinar que cruza as novas tecnologias audiovisuais, a dança e a coreografia. A versão beta estreia dia 23 de abril no Lisboa Incomum.

Rodrigo Fonseca – O projeto OBSCURUS define-se como multidisciplinar. Qual é o cruzamento de disciplinas artísticas que acontece neste projeto?

Jorge Reis – Este projeto é um trabalho de dança contemporânea que cruza alguns aspetos dramáticos do Teatro Físico. A spoken word também é aqui explorada na sua relação com o som. As questões audiovisuais do som, luz e vídeo estão a cargo do artista de novos média Rodrigo Gomes.

RF – As referências de Teatro Físico passam por Grotowski, por exemplo?

JR – Essas referências vêm de experiências mais próximas, nomeadamente do criador e encenador João Garcia Miguel com quem já trabalhei. As referências desta peça vêm acima de tudo de obras literárias e pesquisa na web. Neste espetáculo toda a equipa é co-criadora, não há uma hierarquia, cada um propõe e compõe.

RF – Qual é que é o contexto social e económico da personagem principal, Jude Ora?

JR – O contexto de Jude Ora vem em grande medida do romance de Jude, The Obscure de Thomas Hardy. Esta obra é muito curiosa porque Hardy escreve num momento histórico conturbado. A sua obra é uma crítica aos valores conservadores da época. A personagem que criou foi muito criticada, por exemplo, por ter mais do que uma família. Este romance aborda o contexto social e político no qual se nasce e o quão determinante é para atingirmos os nossos objetivos. A personagem Jude Ora vai beber à personagem Jude deste romance. Jude é obcecado em ser professor universitário, ao ponto que se esquece que tem família. Nunca conseguiu amar verdadeiramente ninguém devido ao quão determinado estava em alcançar o seu objetivo. Acabou por falecer sem se tornar professor universitário. Jude Ora apresenta uma dualidade. O seu nome em inglês pode ser tanto feminino como masculino. O nome Ora vem da mitologia da Albânia. Em soma, tem que ver com o destino dos seres humanos assim que nascem, ou seja, Ora é uma espécie de espírito. Fazendo o paralelo com Star Wars, quando se nasce, ou se nasce light side or dark side. A Ora da mitologia albanesa também se encontra na mitologia grega. São três mulheres ao mesmo tempo e uma delas é evil. Esta faceta tem que ver com o dark side da personagem. É um lado de transformação, de metamorfose em animal. Interessaram-me muito as facetas animalescas e violentas de Ora, a sua frustração e ao mesmo tempo o seu poder de criação.

RF – Quais são as subjetividades projetadas por “uma pessoa não binária que rejeita a solidão e que é incapaz de amar”?

JR – Têm que ver com o contexto social e político de uma pessoa não binária. Jude Ora sente-se muitas vezes sozinha, completamente sozinho. A forma que arranjou para lidar com a situação foi criar. A criação tem um papel importante nesta peça. Imagino que é a parte do espetáculo com a qual o público mais se vai identificar porque é bonita, feminina, leve e enérgica. No entanto, acaba por não se identificar com nada daquilo que cria: foi energia gasta. Devido à frustração, torna-se maquiavélica (Jorge utiliza a palavra evil). Não aceita a frustração de não amar aquilo que cria. Torna-se violenta e desaparece.

RF – Como foi o processo criativo deste projeto? Já tinhas trabalhado com esta equipa de criadores? Foi a primeira vez?

JR -É a primeira vez que trabalhamos juntos, mas já conhecia o trabalho do Rodrigo. É a primeira vez que faço um espetáculo de artes performativas. Apesar de já ter trabalhado na companhia do João Garcia Miguel, o meu papel na altura tinha mais que ver com comunicação e a mistura com as artes visuais. Acompanho muitos artistas, o meu papel como curador é esse. Acompanhava o trabalho do Rodrigo há já algum tempo e achei que faria sentido convidá-lo para este trabalho. Conheci a Minori porque ela está em Torres Vedras a fazer o curso intensivo de artes performativas na Performact. Fiz duas audições, sabendo que a primeira foi basicamente um momento onde lhe apresentei o texto da peça. Na segunda audição tive o apoio de Gonçalo Lobato, professor do Performact. Foi muito fácil para mim chegar à conclusão que seria a Minori devido à sua bagagem cultural e ao seu trabalho de corpo, uma bailarina muito diversificada que vai desde a dança contemporânea, passando pelo Hip Hop até à dança tradicional japonesa. Fizemos uma ampla pesquisa de danças rituais de onde surgiram várias ideias para a coreografia. A Minori teve uma participação muito ativa na construção da coreografia. Com o Rodrigo houve um trabalho de misturar músicas rituais com sonoridades eletrónicas, jungle. Procurámos criar texturas, sons repetitivos e impactantes. As noções geométricas do círculo e do quadrado estiveram também presentes no imaginário do processo criativo ao nível do som e da dança. Os círculos têm que ver com a vida e com o feminino. No último ato, a coreografia desenvolve-se apenas em quadrados. Desenvolve-se pelas qualidades do animal, do violento, do ritual e dos elementos naturais.

RF – Este projeto relaciona-se conceptualmente com o trabalho que tens desenvolvido como curador, ou é uma coisa que sai completamente fora dos moldes que tens praticado?

JR – A pergunta é interessante. Nunca pensei nisso. Como curador relaciono sempre o contexto social com a obra dos artistas, assim como a relação da arte com a tecnologia. Neste espetáculo trabalho muito ambas as questões. Uso, por exemplo, a tecnologia para me referir a questões ancestrais, divinas e sociais. A crítica social aqui tem como principal referência o romance de Thomas Hardy. De facto, conceptualmente, a maneira como faço ambos os trabalhos relaciona-se muito.

RF – Este projeto OBSCURUS, pode ser visto como uma chamada de atenção ao modo como as pessoas cis convivem com pessoas não binárias, ou essa parte crítica não está tão presente?

JR – Não tendo a fechar nada. Quando faço curadoria é igual. Existem várias leituras. A peça não se foca num tema muito específico, mas tem que ver com isso. Deixo que o público faça os seus julgamentos e as suas interpretações.

RF – Quais são as próximas datas de apresentação deste espetáculo?

JR – Antes de mencionar as datas gostava de referir que esta peça tem dois formatos diferentes. Existe uma versão beta e uma versão de palco. A versão beta estreia dia 23 de abril no Lisboa Incomum. A versão palco estreia dia 14 de maio no Centro de Artes e Criatividade de Torres Vedras. Levamos posteriormente a versão palco ao Fórum Cultural de Cerveira nos dias 28 e 29 de maio.

Rodrigo Fonseca (1995, Sintra). Estudou na António Arroio, é licenciado em História da Arte e mestre em Artes Cénicas pela FCSH/UNL. Foi cofundador da editora CusCus Discus e do festival Dia Aberto às Artes. Além da Revista Umbigo, faz crítica musical na plataforma Rimas e Batidas. É técnico de som especializado em concertos e espectáculos e artista residente da associação cultural DARC.

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