Festina Lente: Clara Sánchez Sala no Linha Amarela
Ao longo da rua de Anselmo Braancamp, um traço contínuo proíbe parar e estacionar. Linha amarela, migra do exterior para dar nome a um projeto dos Campanice, que reservam a montra do seu estúdio à constante circulação de artistas. A atual exposição Festina Lente, de Clara Sánchez Sala, está patente até dia 29 de abril e realiza-se em ligação direta com o estúdio da artista em Madrid. O oximoro que dá nome à exposição, significa do latim “apressa-te de vagar”, um mantra que traduz a metodologia de trabalho da artista, empregue “entre a urgência e a diligência”[1]. Mimetizando esta expressão, três velas aromáticas transportam para o estúdio em Anselmo Braancamp o cheiro do atelier de Clara; quando acesas, as velas assinalam a presença de um dos membros do Campanice, que repetem este processo até que a obra se dissolva no ar.
As dinâmicas de rede aqui presentes levam-nos a refletir sobre a condição do estúdio no panorama artístico contemporâneo. Se para alguns “great artists don’t need a 5tudio”[2], para outros o estúdio nunca deixou de existir. A verdade é que o atelier enquanto “torre de marfim” não passa de uma ideia romântica, obsoleta desde os anos 60, que motivados pela arte conceptual deram início às práticas pós-estúdio. Desde então os artistas têm vindo a reinventar o seu espaço de trabalho, em resposta às novas realidades. Um contraste histórico que ajuda a definir a transição destas práticas é o ensaio The function of the studio, de Buren, que em 1971, descreveu o estúdio enquanto “unique space of production”, que como uma moldura ideológica mistifica a produção artística. Qual será então a função deste espaço nos dias de hoje? Frequentemente, os artistas têm transformado os seus estúdios em plataformas híbridas e fluidas, quase-expositivas, ou mesmo virtuais, onde acumulam uma série de operações e interações. Lane Relyea, apoiada em Deleuze, utiliza o termo “network”[3] para descrever o tipo de estúdio que hoje conhecemos, mais democrático, horizontal e multidirecional, que possibilita aos artistas uma maior flexibilidade e informalidade operatória – o estúdio no campo expandido. Analisando a obra de Clara podemos também refletir sobre a contemporânea “object network” que associa materiais do quotidiano neste caso, artificiais (como os candeeiros de tulipa que dão forma à sua obra) e analógicos (como as velas que se consomem ao longo da exposição). A escultura é hoje mais atrativa pelo seu enraizamento no físico e material, que desde os anos 80, com o repúdio da teoria, tem consequentemente reaproximado os artistas de práticas artesanais (aqui evidente na produção manual da obra). Entre a formação institucional e o espírito D.I.Y., a artista convoca a atenção do espectador através da sensibilização do olfato, alcançando uma dimensão intangível da nossa perceção.
Uma última consideração sobre o conceito de “network” é aquela que combate a ideia do artista solitário. Segundo Relyea, o estúdio “gives the artist a mailing address and doorstep”[4], possibilitando a reunião e o intercâmbio, também aqui manifestados. O estúdio há muito deixou a sua condição privada para se assumir como lugar de encontro e relação com o meio envolvente. A montra dos Campanice apresenta-se como expoente desta interação, à imagem de um mundo cada vez mais transitivo e contingente. A sinestesia evocada pela vitrine atrai o espectador peão para um espaço (ironicamente) desprovido de tempo e leva-nos a construir um paralelo entre a Rua Anselmo Braancamp (povoada de estúdios e respetivas montras) e as vitrines parisienses do séc. XX. Como o Flâneur, deambulamos entre o murmúrio das vitrines, vemos a obra de Clara através do reflexo do nosso próprio corpo, viajamos para um mundo espelhado, repleto de afinidades secretas.
[1] Sala, Clara Sánchez. (2022). Festina Lente [Folha de Sala]. Porto: Linha Amarela.
[2] Galeria Fernando Santos [@galeriafernandosantos]. (2022, Abril). Meanwhile… at the artist’s studio [publicação]. Instagram.
[3] Relyea, Lane (2010). «Studio Unbound» in The Studio. Londres: Whitechapel Gallery. p. 218.
[4] Idem, Ibidem, p. 222