Motion. Autos, Art, Architecture
“Bitches know they can’t catch me
(Vroom, vroom) Cute, sexy and my ride’s sporty
(Vroom, vroom) Those slugs know they can’t catch me
(Vroom, vroom) Beep-beep, so let’s ride”
Charli XCX, Vroom Vroom (2016)
O movimento, a aceleração e a velocidade caracterizam a Modernidade. São elementos da mesma equação que inscreveu o quotidiano e a cronologia individual e coletiva num cinetismo linear, estonteante, incontrolável, inelutável.
O automóvel formou a sua indústria, que conformou o mundo mediante as suas vontades. Neste contexto, a indústria automóvel é simultaneamente o triunfo e o catalisador do capitalismo moderno. Se queremos estudar a economia, passamos obrigatoriamente pelo automóvel; se queremos estudar a arquitetura, igualmente. Até a Arte, não obstante a sua propensão formalista, um satélite de si própria muitas vezes, tem algo a dizer e a dever ao automóvel. Não terá sido em vão que Andy Warhol imortalizou, se não a primeira, uma das primeiras experiências de automóvel, o historicamente designado Benz, de 1886.
O automóvel tornou-se, portanto, um fenómeno cultural. Hollywood soube-o. O cinema e a televisão popularizaram-no para além do simples marketing publicitário. Toda uma aura de afetividade foi-lhe desenhada com o tempo, película após película, fotografia após fotografia, drive-in após drive-in. Carros e sexo: uma história amplamente estudada pelo cinema. Não era só o estatuto que os carros representavam, era também a volúpia, a sedução do habitáculo, as primeiras experiências sexuais, de drifting, de ultrapassagem, de desastre. O carro entra, assim, para o imaginário dramático e psicossexual da Modernidade.
De década para década, os automóveis aumentavam a potência, prometiam novos futuros; mais velocidade, cavalos, acelerações; novas possibilidades de ocupação, utilização, atração. O automóvel é a cápsula da Modernidade expansiva, positivista, mecânica… ciclópica. É a concentração e a depuração da maior das ambições individuais, porque só o indivíduo conta, no seu habitáculo forrado a couro, uma mão no volante desportivo, outra nas mudanças automáticas. O automóvel é a sedução e o desejo capitalizados, instrumento de medição económica e urbanística.
E se é certo que o automóvel e a sua indústria foram as mais interessantes e importantes invenções do século passado – ainda que as primeiras experiências remontem ao final do século XIX –, são também o símbolo do que de pior o capitalismo trouxe: a desmesura e a destruição dos ecossistemas. Tudo gira à sua volta: a vida familiar, os Estados, as cidades, a arquitetura, a ciência e até a arte. É o reduto de uma civilização; o artefacto de um período no tempo; a linha matriz do movimento no espaço. É a contradição e a ambivalência tornadas matéria.
Mais focada nos aspetos culturais dos automóveis que nos aspetos críticos ou políticos, Motion. Autos, Art, Architecture é uma exposição que estabelece um curioso percurso cronológico e narrativo pelo automóvel e os seus cruzamentos e tangências com a Arte, a Arquitetura, o Design e a Tecnologia. Das iniciais e rudimentares máquinas móveis de rodas estreitas e aros dourados, deambulamos depois pelo erotismo das curvas aerodinâmicas, até à especulação da mobilidade futura, com pontes e paralelismos com os movimentos artísticos e arquitetónicos.
Todavia é o automóvel que tem destaque principal. Tudo o resto – a arte e a arquitetura – gira à sua volta, como factos de um triunfo inigualável, que obrigou as cidades a aumentarem as pistas de rodagem, a diminuírem o espaço público qualificado para as trocas e partilhas humanas, sociais e culturais, a dobrar o espaço e o tempo num continuum frenético, de intermináveis autoestradas, que parecem oferecer ao condutor o domínio da paisagem e do mundo. É a compressão espácio-temporal, a potência condensada num habitáculo sobre rodas.
O deslumbramento que os automóveis provocam é notório – de tal forma que a própria exposição e curadoria não o conseguem dominar: Bird in Space (L’Oiseau dans l’espace) (1932-40), de Constantin Brancusi perde-se na gravidade dos artefactos mecânicos em torno da qual orbitam; Unique Forms of Continuity in Space (Force uniche della continuità nello spazio) (1913), de Uberto Boccioni, é ultrapassada, a larga velocidade, e deixada a um canto; as pinturas de Giacomo Balla, David Hockney, Bridget Riley são paisagens fugazes; as obras de James Rosenquist e Andreas Gursky esvoaçam no turbilhão lançado pela velocidade dos Firebirds da General Motors. A presença dos automóveis é tal que eclipsa tudo que está a seu redor; as pinturas, esculturas, fotografias e os desenhos arquitetónicos e de comunicação gráfica tornam-se vistas difusas e confusas de linhas e cores, manchas percetivas periféricas num andamento a alta velocidade.
A exposição obriga, portanto, a um abrandamento radical, contrário à natureza dos objetos que expõe. Só deste modo conseguimos abraçar os magníficos fotogramas de Eadweard Muybridge, divertirmo-nos nas ilusões óticas de Riley ou de Victor Vasarely, estudar os planos de Le Corbusier para o Plano Voisin, deixarmo-nos levar pela nostalgia hollywoodesca Ed Ruscha, perdermo-nos nas vanguardas modernistas de Boccioni, Sonia Delaunay, Balla e Benedetta Cappa Marinetti.
Tirando estes reparos, Motion. Autos, Art, Architecture é uma exposição que oferece múltiplas linhas de investigação, com um assinalável número de obras, muitas das quais de considerável interesse histórico e artístico, e muito espaço para o pensamento crítico sobre Modernidade.
Nesta perspetiva, a última galeria é a que desenvolve uma posição mais crítica em relação ao automóvel, elidindo-o quase completamente do futuro e substituindo-o por outras formas de mobilidade. Foi às universidades e aos alunos de arquitetura que coube imaginar um futuro em que as cidades se transformam em comunidades móveis, em que as autopistas são ocupadas pelos seres humanos e promovem uma reinterpretação antagónica, inclusive, do já referido Plano Voisin, e em que a mobilidade é, finalmente, servidora da sustentabilidade.
Mas outras camadas podem ser escavadas neste exercício arqueológico da modernidade, de um futuro pretérito, proposto pela arquitetura, pela arte e pelas linhas futuristas que alguns modelos automóveis criaram. Porque é, de facto, um exercício arqueológico. E porque talvez seja este o único modo de fazer sentido da Modernidade: inseri-la num contexto museológico, museografando as suas contradições. A obra de John Chamberlain é presciente nos caminhos do capitalismo moderno, em parte autofágico em parte aceleracionista: deixemos acelerar os tempos, deixemos acelerar tudo até ao seu colapso e depois então construamos sobre a crítica dos paradoxos que este aceleracionismo expôs. Sentimos, nesta exposição, a Modernidade em velocidade sempre galopante, em que o dia de ontem já comporta uma eternidade passada e, portanto, legitimável no museu. Este, por sua vez, acelera também na sua missão, a par de uma economia de atenção capitalizada, promovida pelas redes sociais, reiterada pela fotogenia destes veículos e pela arquitetura do próprio museu.
Dito isto, é possível que, a partir do momento em que se insere o automóvel numa lógica de museu, haja uma viragem ontológica no modo como entendemos esta criação, o período em que se desenvolveu e o momento atual. A tese do museu enquanto mausoléu, de Theodor Adorno, encontra aqui uma nova pertinência: ao se tornarem objetos museológicos, os automóveis aqui presentes jamais poderão ser ativados, e a vida que anteriormente tiveram sumiu-se. Ou seja, o museu é o lugar onde o automóvel vai morrer, e a exposição é clara, ainda que não de forma implícita, ao terminar com uma prospeção de um futuro ausente de veículos, em que a emoção e a vertigem suscitadas pelo automóvel já só podem ser experienciadas numa emulação ou simulação artísticas, tal como proposta em Sound of Motion, por Nick Mason, baterista dos Pink Floyd.
A estética especulativa da última sala é omissa em sabermos o futuro desta indústria – não já exatamente o automóvel propriamente dito, mas todo o sistema económico capitalista que lhe subjaz, de grandes fábricas, stands, postos de combustível, etc. Porque afinal, e como já se aflorou, esta é também uma exposição sobre o capitalismo e os seus tropos, símbolos e culturas. Se umas universidades exploram a mobilidade coletiva extrema, outros consideram um futuro para lá dela, numa vivência hiperlocal; se uns consideram que o transporte passa a ser parte integrante da infraestrutura dos edifícios, outros repetem o desejo pela exclusividade e pelo individual, reconsiderando o automóvel como um gadget estilizado, sem recurso à intervenção humana. E se o futuro da mobilidade é mais comandado pelas forças da indústria e do capital do que pela política e a vontade coletiva, e se aos museus do século XXI é exigida um posicionamento político, outra questão vem superfície: quão política é esta exposição?
Motion. Autos, Art, Architecture conta com a curadoria de Norman Foster, a cocuradoria de Lekha Hileman Waitoller e Manuel Cirauqui e pode ser visitada no Museo Guggenheim Bilbao até 18 de setembro.
“Vaughan: I’ve always wanted to drive a crashed car.
James Ballard: You could get your wish at any moment.
Vaughan: No, I mean a crashed car with a history. Camus’ Facel Vega, Nathaniel West’s station wagon, Grace Kelly’s Rover 3500. Just fix it enough to get it rolling. Don’t clean it, don’t touch anything else.”
David Cronenberg, Crash (1996)