Mais vale tarde – Mariana Gomes e Nuno Gil na aDrogaria
Mais vale tarde, a terceira exposição do projeto cultural aDrogaria (Corujeira – freguesia de Campanhã) reúne trabalhos da autoria de Mariana Gomes (Faro, 1983) e Nuno Gil (Lisboa, 1983), antigos colegas da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, que agora expõem juntos pela primeira vez, num diálogo que se estende à própria arquitetura do espaço que os acolhe. A intimidade do trabalho diário de atelier, a relação de compromisso com a pintura e a sua valorização, perpassam a prática artística de Mariana Gomes e Nuno Gil cujo entusiasmo e cumplicidade se refletem na presente exposição. Entre o desenho e a pintura, entre o ser uma coisa e o não ser, numa questão entre a manualidade e algo que é feito mecanicamente, os trabalhos de Nuno Gil em exibição n’aDrogaria seduzem-nos de modo imediato.
Cheios e com muitas camadas de significação que procuramos desvendar, surpreendem-nos pelos materiais que ao nosso olhar, se desvendam sobre a superfície de papel, como num jogo de procura e descoberta. Acrílico, tinta-da-china, grafite e agrafes; formas, padrões, e cores que se sobrepõem; texturas e relevos que se materializam; furos que simultaneamente ocultam e revelam, originam um corpo de trabalho de cariz físico, táctil e exótico.
As imagens e padrões envolventes e serpenteantes, em alguns casos de cores vibrantes, remetem-nos para um universo e imaginário botânico, motivos vegetalistas ou ambientes aquáticos, formas que por vezes ultrapassam o limite da superfície em que se inserem. A atração do artista pelo informe revela-se num processo de trabalho metódico cujas composições, entre a figuração e abstração, resultam da acumulação de diversas técnicas e materiais mediante a repetição de formas, cores e padrões.
Acresce-se no grupo de trabalhos em exibição a utilização dos agrafes que o artista qual artesão tece na superfície das suas obras, como uma chuva metálica vertical que imprime ritmo, ao mesmo tempo que permite uma observação difusa e uma transparência silenciosa que apela à contemplação. A sobreposição de camadas sucessivas de cores, a combinação e junção de formas que o artista desenha/recorta e nos apresenta sobre superfícies de papel pintado revelam-nos um processo de reconfiguração e de destruição, em que Nuno Gil nos desvenda de modo habilidoso o que se esforçou por encobrir, revelando-nos várias camadas de tempo – que o seu trabalho exige – como no processo de sedimentação que tão bem dialoga com os fragmentos e estilhaços de Mariana Gomes.
A irreverência e a comicidade que caraterizam a prática artística de Mariana Gomes, o diálogo que estabelece com o mundo, com os seus pares e a observação cuidada do quotidiano, perpassam o corpo de trabalho presente na exposição. Num limbo entre a figuração e a abstração, deixamo-nos seduzir por obras que se materializam em pinturas e objetos escultóricos cujas formas, cores, matéria, intensidade e leveza despertam a nossa atenção. De dimensões variáveis, mas reduzidas, as esculturas de Mariana Gomes causam alguma estranheza e intrigam-nos, convidando-nos a uma interação, a que paremos para as contemplar. Dispostas no interior de duas gavetas e sobre o enorme balcão em madeira – evocação da loja que outrora ocupava o novo espaço expositivo – num aparente caos organizado, as modelações tridimensionais assemelham-se-nos a formações rochosas, pedras que adquirem vida e se tornam orgânicas, remetendo-nos de forma imediata, ora para um ambiente natural, ora para um universo cósmico, havendo uma organicidade no conjunto, um jogo de equilíbrios que se desenvolve entre a levitação e a queda. Pedras que se aglomeram, ruínas, estilhaços que estabelecem um diálogo e uma relação interessante com os trabalhos de Nuno Gil.
A simplicidade contrasta com o poder evocativo da memória da terra que nos é dada pelos elementos geológicos, com a pluralidade de leituras que nos fornece, como microcosmos que retratam a passagem do tempo e a sedimentação. Elemento recorrente nos seus desenhos e pinturas, as pedras, não sendo seres vivos nem objetos, são formatos dúbios em relação ao que pode ser uma figuração e uma abstração, aspeto que parece assumir particular interesse para a artista.
Considerando que a relação de Mariana Gomes com a escultura está intimamente ligada à pintura, como uma extensão da mesma e ao seu serviço, observamos os dois óleos sobre tela da artista em exibição nas paredes d’aDrogaria. Ambas as telas de pequena escala, atraem o espetador pelas formas que neles figuram e por uma aparente ingenuidade que nos desarma, às quais se acresce a importância atribuída à cor, ao gesto e à matéria, qualidades que caraterizam e que têm pautado a prática pictórica da artista. Experimental e obsessiva no seu método de trabalho, a leveza que Mariana transporta para as obras resulta – qual Sísifo ao fazer rolar a pedra até ao cume da montanha – de um trabalho penoso e exigente. De cariz figurativo – mesmo quando a figura é ambígua como uma pedra – denotamos em ambas as pinturas o fascínio pela cor, pelo seu movimento e o modo como se articula na tela. Destacamos os veios das pedras, a sensação táctil de aspereza e de irregularidade conseguidas pela iluminação das formas e dos seus volumes, pelos sombreados e pela utilização habilidosa dos tons castanhos, cinzas, verdes e brancos.
Não poderíamos terminar sem mencionarmos a importância atribuída à composição e à materialidade, à representação da pincelada enquanto matéria e por fim a relação que se estabelece, não só com os trabalhos de Nuno Gil, mas com o próprio espaço d’aDrogaria, nomeadamente com o chão, o seu padrão e a escadaria de acesso ao logradouro, como que se materializando numa das telas em exibição.
Mais vale tarde, está patente n’aDrograria até ao dia 16 de abril.