Os visitantes dos museus e as economias da atenção
As tecnologias digitais revolucionaram a sociedade contemporânea e a massificação da utilização da Internet, de smartphones e de apps transformou formas de ver, estar e interagir. Assim, redes sociais como o Facebook, Twitter ou Instagram tornaram-se ferramentas imprescindíveis na mediação da realidade circundante e nas relações que estabelecemos com o outro. Tornou-se prática comum fotografar, filmar e partilhar o nosso quotidiano nessas mesmas plataformas, que agregam entre si milhares de milhões de utilizadores, de forma a alimentar a constante urgência de criar e, simultaneamente, consumir novos conteúdos.
A avidez da utilização de smartphones saltou também para as galerias expositivas de forma massificada, trazidos por visitantes ansiosos em fotografar todas as suas experiências diárias, e que encontram no museu um espaço altamente estetizado e, por isso, muito apetecível.
Se é verdade que sempre encontrámos turistas, a deambular pelas galerias expositivas, transportando máquinas fotográficas, a entrada em larga escala de smartphones equipados com câmaras nos espaços museológicos, marca o início de um novo momento na história das instituições, que não foi pacífico, e que resulta de uma forçada adaptação aos tempos que correm.
Até há poucos anos, basta recuarmos sensivelmente uma década, a grande maioria dos museus mundiais proibiam de forma veemente que os visitantes fizessem qualquer registo fotográfico das obras de arte em exposição, e uma qualquer movimentação com a máquina levaria a uma rápida intervenção do assistente de sala mais próximo. Alisa Martin, então colaboradora do Brooklyn Museum, alertava numa entrevista em 2013 «no-photo policies can be difficult to enforce […] as the devices get smaller, it gets harder to manage» (Miranda, 2013).
De facto, a proibição da captação de imagens foi-se tornando mais difícil de assegurar, como é exemplo a exposição do artista James Turrell, no museu Guggenheim em Nova Iorque, em 2013.
Na instalação Aten Reign, criada especificamente para a rotunda Frank Lloyd Wright e conhecida pelo seu magnetizante efeito de luzes, apesar do expresso pedido do artista para que a captação de imagens fosse proibida, foram mais de 5000 mil as publicações que apareceram por entre diversas redes sociais, demonstrando uma total incapacidade do museu de contrariar esta vontade dos visitantes, para quem o acto de fotografar o quotidiano e a sua posterior partilha, são parte indissociável da experiência inicial.
Os museus foram, de certa forma, obrigados a actualizar as suas políticas internas e a modificar as regras até então vigentes, para acomodar as vontades dos públicos, indo ao encontro daquilo que estes pretendem, sob pena de serem ultrapassados numa sociedade que se quer do espectáculo. Porém, para os seus profissionais e investigadores, estes novos cenários impuseram um intenso debate, onde, por entre as várias razões para que se mantivesse a proibição, se argumentava que a fotografia poderia ter efeitos prejudiciais para a experiência estética do visitante (Stylianou-Lambert, 2017).
Considerando a definição de Museu do ICOM (2007) e a sua missão enquanto espaço de educação, estudo e deleite, esta hesitação da comunidade museológica denuncia preocupação pelo possível empobrecimento da relação entre o observador e a obra, o que poderia levantar questões sobre a capacidade do museu em continuar a ser o espaço privilegiado para a apreciação do objecto artístico, algo impregnado na sua matriz.
Na verdade, hoje, qualquer visitante de museu já se deparou com aglomerados de máquinas fotográficas, erguidos pelos visitantes em frente a uma qualquer obra de arte, a disparar continuamente, após o que prosseguem rapidamente para a próxima obra, na qual se repete o processo. Complementarmente, enquanto utilizadores de redes sociais, são também milhares as publicações que vemos em espaços culturais, onde se incluem as selfies, que se tornaram quase obrigatórias, quer individuais, quer de famílias inteiras sorridentes, a pousar em frente da principal obra-prima do museu que visitam. Perante este comportamento colectivo, é legítimo que se questione se o receio demonstrado por diversos profissionais de museus era válido, se considerarmos que muitos dos olhares que vemos nas galerias, em direcção a obras de arte, são feitos através da mediação do ecrã do smartphone.
Mas a utilização massiva de aparelhos móveis levanta ainda outras questões, das quais saliento a diminuição do tempo de atenção e concentração, problemática transversal a toda a sociedade. O constante e fácil acesso a múltiplos conteúdos, disponíveis a qualquer hora e em qualquer lugar, complementado pelas notificações das redes sociais, pelos clickbaits e as constantes notícias de última hora, criaram comportamentos aditivos, personalizados na necessidade constantemente de fazer scroll, garantindo que absorvemos todo e qualquer novo conteúdo disponível (FOMO – fear of missing out). Este desejo não se desliga à entrada da galeria expositiva, acompanhando-nos durante a visita e obriga a dividir atenções por entre o que vai aparecendo no ecrã do smartphone e as obras de arte que vamos vendo, desafiando a nossa capacidade de estarmos sós, isolados e em verdadeira comunhão com o que nos rodeia.
Estudos citados pelo grupo TATE, dizem-nos que os visitantes das galerias de arte passam sensivelmente uma média de 8 segundos a olhar isoladamente para uma única obra de arte, o que nos impele a resgatar a premente questão da atenção e de como esta se tornou um valioso bem nos últimos anos. Com a alteração de alguns pressupostos pré-estabelecidos, a economia passou também a funcionar com uma base no imaterial, focada na “atenção” de cada um, que passou a ser um bem valioso. Já em 1997, Michael Goldhaber apontava para os muitos serviços online que eram oferecidos de forma gratuita, que iriam dividir a nossa atenção e a tornaria um bem disputado pelas várias empresas, como forma a garantirem o seu financiamento.
O termo “atenção” é definido pela American Psychological Association como «a state in which cognitive resources are focused on certain aspects of the environment rather than on others» e o termo “economias da atenção” alude a uma realidade na qual esta se torna um “produto” que as empresas querem manter a todo o custo para aumentar lucros. Neste âmbito, há tentativas constantes para a atrair e monopolizar, pelo maior período de tempo possível, o que obriga a que as empresas que se movem dentro destes novos mercados arranjem criativas novas formas de continuadamente captar a atenção individual dos utilizadores «As a result, human attention has become commodified, and harvesting this attention is now an integral part of the revenue generation strategy implemented in numerous business models. Essentially, the attention economy is fed by a vicious cycle in which we are the product of the attention economy yet also the customer who is unknowingly manipulated into reinforcing it» (Joy, 2021).
Na verdade, a chegada a uma exposição de um grande museu, com diversas galerias e muitas obras díspares entre si, pode ser difícil para um visitante sem conhecimentos de história da arte e sem técnicas que lhe permitam fazer uma interpretação das mesmas. Adicionalmente, a visita era geralmente associada a um quase ritual, cheio de regras e passos concretos, para os quais nem todos tinham a chave.
Hoje, em museus cheios, com um burburinho a encher os corredores, smartphones a tocar e écrans a brilhar, vai-se o mito do calmo ritual da contemplação lentamente desvanecendo, para dar lugar a um espaço com diferentes regras, consonantes com tempos que correm.
Se a ubiquidade digital veio alterar a forma como visitamos os museus e nos relacionamos com as obras de arte, os responsáveis por estes espaços tentam conceber formas criativas para atrair as atenções, muitas vezes usando as redes sociais como ferramentas educativas e integrando-as desde logo na experiência. Hoje, os visitantes são, muitas vezes, incentivados a partilhar as suas fotos das visitas, como forma de estabelecer laços e de ir ao encontro do que os motiva. É uma estratégia para garantir não apenas a sua entrada, mas a sua atenção para o discurso artístico e curatorial.
Sendo esta uma questão actual e premente para a realidade museológica, importa estudá-la de forma profunda, não apenas para percebermos melhor os públicos, mas também para garantirmos que os museus trabalham sobre as ferramentas certas para responder a estas novas problemáticas.
Raquel Pereira não escreve ao abrigo do AO90.
Bibliografia
ICOM. (2007). Museum Definition. Disponível em: https://icom.museum/en/resources/standards-guidelines/museum-definition/ (consultado em: 22 de Março de 2022).
Joy, Asher. (2021). «The Attention Economy: Where the Customer Becomes the Product». Business Today, 18 Fevereiro. Disponível em: https://journal.businesstoday.org/bt-online/2021/the-attention-economy-asher-joy (consultado em: 22 de Março de 2022).
Mintzer, Ally. (2020). «Paying Attention: The Attention Economy». Berkeley Economic Review, 31 Março. Disponível em: https://econreview.berkeley.edu/paying-attention-the-attention-economy/ (consultado em: 23 de Março de 2022).
Miranda, Carolina A. (2013). «Why Can’t We Take Pictures in Art Museums?». ARTnews, 13 Maio. Disponível em: https://www.artnews.com/art-news/news/photography-in-art-museums-2222/ (consultado em: 22 de Março de 2022).
Stylianou-Lambert, Theopisti. (2017). «Photographing in the art museum: Visitor attitudes and motivations». Visitor Studies,20(2): 114-137. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/321896100_Photographing_in_the_Art_Museum_Visitor_Attitudes_and_Motivations(consultado em: 23 de Março de 2022).
Tate. (s.d.). «A guide to slow looking». Disponível em: https://www.tate.org.uk/art/guide-slow-looking (consultado em: 23 de Março de 2022).
TEDx Talks. (2016). Art in the Age of Instagram | Jia Jia Fei. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8DLNFDQt8Pc&t=152s&ab_channel=TEDxTalks (consultado em: 28 de Março de 2022).