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LOSS OF AURA na Galeria Pedro Oliveira

Um mágico repete incessantemente: “No Hay Banda!” e ainda assim ouvimos uma banda. Um trompetista surpreende o espectador no momento em que se retira, deixando ecoar a melodia em surdina no vazio do palco. “It’s all recorded!”, grita o mágico num tom irónico, confrontado o espectador com a sua ingenuidade. Assim abre a cena do Club Silencio, de Mulholland Drive (David Lynch, 2001), um apreciado mise-en-scène do cinema.

Apropriando-se de um still desta cena e convocando o mesmo efeito ilusionista utilizado por David Lynch, uma sequência de desenhos de Carlos Correia dá início à exposição, na Galeria Pedro Oliveira. A par da possibilidade de reprodução da obra de arte, quebra-se o feitiço da autenticidade, que Walter Benjamin chamou de “aura”, e surge a facilidade do encontro com o recetor. Além de uma referência ao filósofo alemão, o título da exposição, Loss of aura, é uma homenagem a Correia, que em 2012 criou uma editora homónima, para apresentar o seu trabalho. Bibliografia, um livro feito de capas, é uma das publicações do artista presente na exposição. A compilação de referências literárias e artísticas encontra-se sobre um plinto, refletindo sobre o formato editorial enquanto obra de arte. Com o mesmo mote, Material Escavado, de André Alves, apresenta uma série de composições abstratas, realizadas a partir da ocultação (e revelação) de páginas de livros, cobertas de blocos de tinta. A crise da aura é evidente na manipulação destes textos que resulta em novos sentidos narrativos – “choose/ a crisis that can send/ us into a new world”.

Separadas por uma coluna, all those hours/ beating back/ memories/ spent, de André Alves, comunica com uma fotografia do acervo do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). A obra é de Maria Trabulo e dá a ver a estrutura interna do museu, numa fervorosa crítica à instituição. Da mesma autora, um conjunto de seis plintos provenientes do MNAA criam na ausência da obra a estranheza do espectador. Cobertos de pó, recolhido pela artista, na coleção de escultura desta instituição, os plintos passam de mecanismo de validação habitualmente presentes na cenografia museal tradicional a ferramentas ativas de reflexão sobre a condição atual do museu. Na mesma sala, um capitel do Palácio Almada-Carvalhais é representado na serie fotográfica Ballad of today, de André Cepeda. Sobre o objeto retratado, sabemos ter sido mandado construir por Rui Fernandes de Almada, o mesmo que se julga ter encomendado a pintura de São Jerónimo, o único exemplar de Albrecht Dürer em Portugal, presente no acervo do MNAA. Sobre a representação fotográfica, sabemos que a câmara é, à priori, uma máquina arquivística, e que o arquivo é um sistema discursivo ativo, aqui usado para pensar o monumento enquanto espelho da história, exemplo do crescente interesse no património protegido que ajuda a construir a identidade do mundo em que vivemos. Na última sala da galeria, Pilar Mackenna ergue uma miríade de maquetas, composições intuitivas e abstratas, construídas a partir de objetos colecionados pela artista. Aplicando verbos como dobrar, encaixar, multiplicar ou suspender, a artista chilena apresenta meditações sobre a fragilidade do monumento. Como uma máquina do tempo, uma aguarela de Mackenna, traz-nos à memória a obra de Kandinsky levando-nos a refletir ainda sobre a representação objetiva da realidade, que os expressionistas contrariavam.

As tensões entre documento e monumento são exploradas por Catarina Braga, na série If a tree falls in a forest and no one is around to hear it, does it make a sound?. A artista recorre a um ficheiro digital (Google Earth) para liquidar as fronteiras entre amateur e profissional, público e privado. Como que invertendo o título da exposição, a imagem torna-se “the sovereign analogue of identity, memory, and history, joining past and present, virtual and real, thus giving the photographic document the aura of an anthropological artifact and the authority of a social instrument.”[1]. Mergulhando nas contradições da fotografia de natureza no Antropoceno, a artista reflete sobre a biosfera na qual não existe terra intocada. As imagens da Amazónia, captadas no verão de 2019, são contemporâneas aos devastadores incêndios, motivados pelos interesses da indústria agropecuária de Jair Bolsonaro, parte de um sistema económico que a crise sanitária já provou ser possível suspender.

Loss of Aura, reúne obras de André Alves, André Cepeda, Carlos Correia, Catarina Braga, Maria Trabulo e Pilar Mackenna. A exposição tem curadoria de Luís Pinto Nunes e Susana Lourenço Marques e está patente na Galeria Pedro Oliveira até ao dia 7 de maio.

[1] Enwezor, Okwui. (2008). Archive Fever: Photography between History and the Monument. New York: International Center of Photography. P. 13.

Filipa Valente (Aveiro, 1999) frequenta o mestrado de Estudos Curatoriais, no Colégio das Artes (UC) e é licenciada em Artes Visuais e Tecnologias Artísticas, na Escola Superior de Educação (IPP). Trabalha na OSMOPE, como atelierista. É cofundadora da Galeria Ocupa. Escreve para a revista Umbigo. Foi assistente de Curadoria e Press-officer na Ágora_Bienal de Arte Contemporânea da Maia 2021. Participou na curadoria da exposição “No sonho do homem que sonhava, o sonhado acordou”, apresentada no CAPC (2021) e no MNAC (2022), sendo responsável pelos textos da folha de sala e da publicação. O seu percurso enquanto artista iniciou-se em 2019, destacando-se as exposições individuais: “Pedra Aberta” (Concertos que nunca existiram, 2019) e “A Forma do Vazio” (Galeria Ocupa, 2019); as exposições coletivas: “As pedras também constroem coisas” (Cisterna da FBAUL, 2021), “Presente Contínuo” (Centro de Arte Oliva, 2020), “Trabalho Capital # Greve Geral” (Centro de Arte Oliva, 2020) e “A Espessura do Mundo” (Espaço Mira, 2019); e a participação em eventos como: a mostra de videoarte no Canal 180, em parceria com a Ágora_Bienal de Arte Contemporânea da Maia 2021. Em 2021, participou no Laboratório de Investigação, Formação e Criação Artística | END+, produzido pelo Colectivo 84, com o projeto de escrita "Drama, na 3ª Pessoa" que integrou posteriormente o Festival END – Encontros de Novas Dramaturgias | 5ª Edição (2022).

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