Top

Portugal na Bienal de Veneza: entrevista com Pedro Neves Marques

Pedro Neves Marques (Lisboa, 1984) é o artista que representará Portugal na próxima Bienal de Veneza com o projeto Vampires in Space, sob a curadoria de João Mourão – diretor do Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas nos Açores – juntamente com Luís Silva, responsável da Kunsthalle Lissabon.

A exposição terá lugar nos espaços do Palazzo Franchetti, à frente da ponte da Accademia – que será a sede do Pavilhão Português ao longo dos próximos três anos – enquanto a abertura ao público decorrerá a partir de 23 de abril até 22 de novembro de 2022.

Concebida como uma viagem interestelar de um grupo de vampiros, a mostra transformará as salas do palácio através de filmes, instalações e poemas, num percurso sem começo nem fim, de modo a que os espectadores possam perder-se nela, deixando-se plenamente seduzir pela cenografia idealizada pelo Estúdio Diogo Passarinho.

Vampires in Space, comissariada pela Direção-Geral das Artes, tem como mecenas principal a Fundação EDP e conta com o apoio de muitas coleções privadas italianas, da Galeria Umberto Di Marino, de Nápoles -que representa o trabalho do artista em Itália – e será produzida graças a um orçamento total de cerca de 400 mil euros. Após a Bienal, o projeto de Pedro Neves Marques voltará a Portugal para ser mostrado no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, e em seguida o percurso da mostra passará pela Haus der Kunst, em Munique (Alemanha), e pelo Pivô Arte e Pesquisa, em São Paulo, no Brasil. 

Mesmo tendo sido apresentado no Teatro Thalia, em Lisboa, Vampires in Space mantém ainda uma aura de mistério não esclarecido nem pelo artista nem pelos curadores, a deixar intacto o “efeito surpresa” para os dias da inauguração veneziana. 

Conversámos com Pedro a fim de tentar esclarecer um pouco o mundo das suas criaturas noturnas.

Matteo Bergamini – A inspiração para realizar Vampires in Space surgiu no seguimento do tema-título da Bienal, “The milk of dreams”. Pode-nos falar sobre o que projetou?

Pedro Neves Marques Vampires in Space era um projeto, na forma de poesia e um guião, que eu estava já a maturar antes da bienal, mas que veio dialogar perfeitamente com o tema “The milk of dreams”. Estou a apresentar um novo filme, distribuído por três salas do Palazzo Franchetti, no qual assistimos ao dia-a-dia de um grupo de vampiros – chamemos-lhes assim, porque é um pouco mais complicado do que isso – a bordo de uma nave espacial. Esta nave está numa viagem entre a Terra e um exoplaneta distante, perfeito para a vida humana ali florescer e como os vampiros vivem para sempre, são os candidatos ideais para viajar pelo cosmos. O filme é acompanhado por um conjunto de novos poemas que, como habitual na minha poesia, misturam biografia e ficção – neste caso fantástica – e uma cenografia que se articula com o Gótico Veneziano do Palazzo Franchetti. 

MB Qual é a ligação entre este último trabalho e os anteriores? Qual é a metodologia que adota ao construir uma obra que se desdobra quer em vídeo, quer num ambiente ou numa instalação?

PNM – A escrita, seja de poesia, de um guião, uma ficção, ou até mesmo um texto crítico, é muitas vezes a base dos meus trabalhos. Neste caso, o projeto começou com um primeiro poema, que rapidamente se desdobrou em mais poemas. São poemas pessoais, muito íntimos, que cruzam reflexões sobre género e sexualidade com a imagem e as expectativas do vampiro, bem como com formas queer de reprodução e com a ideia de eternidade e memória – o modo como vamos reconstruindo quem somos ao longo da vida. Há também um lado lúdico, com referências mais populares ao cinema ou livros da Marvel, por exemplo. Foi a partir dos poemas que cheguei às personagens que dão corpo ao filme que vemos no pavilhão. Neste projeto levo a fantasia e a ficção científica a um extremo, mas em termos metodológicos e temáticos é fácil ver como Vampires in Space se relaciona com filmes anteriores como, por exemplo, Exterminator Seed, The Bite ou Becoming Male in the Middle Ages, nos quais uma profunda pesquisa se desdobra em ficções especulativas e dramas emocionais.

MB O coração do projeto Vampires in Space é o corpo explicitamente não-binário, discutindo a ideia de género, mas também falando sobre questões como a ecologia ou a biopolítica. Acha que seja imprescindível sensibilizar a maioria das pessoas para esses temas, ainda espinhosos para muita gente?

PNM – Questões de género são transversais a muito do meu trabalho, até mesmo em obras mais explicitamente ecológicas ou tecnológicas. Uma longa história de controlo dos corpos e, em contrapartida, várias formas de feminismo ou uma noção queer de ecologia – na qual nem os humanos nem a natureza existem por si só, mas são sempre parte de outros sistemas e conceitos tecnológicos, animais, vegetais, minerais, e por aí em diante – são muito importantes para mim. Não se trata, simplisticamente, de eu ser uma pessoa não-binária, mas este projeto em particular vive intensamente de uma experiência transgénero. Isso está nos poemas, nos diálogos, na reinvenção de uma pessoa e na sua relação com a memória, no estado de suspensão -ou transição -a bordo desta nave espacial, na possibilidade de gerar vida ou não… Felizmente, há cada vez mais arte e literatura a refletir sobre estas experiências, e esta é também a minha contribuição.

MB – Em que sentido considera a figura do/a vampiro/a queer? Na maioria das vezes, o seu papel foi desenvolvido em versão bissexual-binária pelo cinema do século passado…

PNM – Histórica e culturalmente, a figura do vampiro sempre foi desenhada como libidinal, mas acima de tudo como disruptora de género – por exemplo, a desconstrução da masculinidade. Para mais, temos esta noção de reprodução viral, através de uma mordida, para lá de género ou idade. No entanto, o elemento que me interessou explorar emocionalmente é a eternidade de um vampiro e o inevitável exercício de memória e de auto-ficcionalização ao longo de uma longa vida. Essa autoanálise, psicológica e física, não é evidentemente exclusiva a uma experiência não-binária, mas é muito especial.

MB – A artista francesa Orlan, que já trabalhou vários anos à volta do conceito de reescrita do corpo, declarou: “A arte pode mudar o mundo”. Alfredo Jaar disse: “A arte transforma o mundo, uma pessoa de cada vez”. Pensa que a arte tenha esse poder? Como é preciso utilizá-lo?

PNM – A arte é, por si mesma, política. Sempre. A partir do momento que uma pessoa, uma criança ou um adulto, seja tocada por um filme, uma escultura ou um livro, a arte tem o poder de transformar uma subjetividade. Se não acreditamos nisso, então não vale a pena ser artista. Até porque esse espectador, essa pessoa que é tocada por um objeto artístico, podes ser tu mesma. No que toca às minhas obras, no entanto, elas são sempre enraizadas politicamente em questões ecológicas, ou sobre futuros tecnológicos, ou experiências dissidentes de género, ou simplesmente aspetos emocionais. É algo que me é natural e sobre o qual reflito intensamente.

MB – Hoje em dia, quem é o vampiro? Qual é o seu papel social?

PNM – O vampiro ou vampira, que não é mais do que imagem ou uma ficção cultural, sempre refletiu o modo como certas épocas olharam para questões de género e sexualidade, bem como de viralidade, vitalidade e morte. Isso é bastante óbvio na época Vitoriana, com a sua normatização e controlo dos corpos, das binariedades e das categorias científicas -que procuraram controlar a libido e suprimir a homossexualidade, vidas transgénero, ou simplesmente moldar a feminilidade e a masculinidade. Mas vemos a mesma reflexão a partir da década de 1960 com o feminismo ou nas décadas de 1980 e 1990 com o vírus da SIDA. Nesse sentido, pergunto-me de que modo os vampiros refletem as nossas experiências hoje, numa época não só de visibilidade de experiências transgénero e queer, mas também de um certo colapso da noção de corpo como entidade autónoma. 

MB – Os espaços do Palazzo Franchetti serão transformados com a ajuda do estúdio de Diogo Passarinho, criando um contraste entre o marcado estilo Gótico do palácio e a atmosfera da exposição. Qual é a sensação que quer que os espectadores experienciem?

PNM – Desejo que os visitantes mergulhem num outro mundo e se deixem levar pelo trabalho cinematográfico, literário e cénico que criámos. Que entrem numa nave que é tanto passado quanto presente, espaço psicológico interior e cosmos galáctico lá fora. E espero que se deixem emocionar.

Matteo Bergamini é jornalista e crítico de arte. Atualmente é Diretor Responsável da revista italiana exibart.com e colaborador para o semanário D La Repubblica. Além de jornalista, fez a edição e a curadoria de vários livros, entre os quais Un Musée après, do fotógrafo Luca Gilli, Vanilla Edizioni, 2018; Francesca Alinovi (com Veronica Santi), pela editora Postmedia books, 2019; Prisa Mata. Diario Marocchino, editado por Sartoria Editoriale, 2020. O último livro publicado foi L'involuzione del pensiero libero, 2021, também por Postmedia books. Foi curador das exposições Marcella Vanzo. To wake up the living, to wake up the dead, na Fundação Berengo, Veneza, 2019; Luca Gilli, Di-stanze, Museo Diocesano, Milão, 2018; Aldo Runfola, Galeria Michela Rizzo, Veneza, 2018, e co-curador da primeira edição de BienNoLo, a bienal das periferias, 2019, em Milão. Professor convidado em várias Academias das Belas Artes e cursos especializados. Vive e trabalha em Milão, Itália.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)