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Apocalypso de Luara Raio na Black Box do Centro Cultural de Belém – CCB

Apocalypso é uma performance conceptualizada e dirigida pela bailarina e coreógrafa Luara Raio, em co-criação com a também bailarina e coreógrafa Acauã El Abandide Sereia. A cenografia é de Anat Bosak e a iluminação de Luisa Labatte. O processo criativo teve início em dezembro de 2021 no ICI-CCN-Centro Coreográfico de Montpellier no contexto do mestrado Exerce (Exerce Master degree) deste instituto. Apocalypso pode ser visto como um objeto que questiona a maneira como pensamos a identidade e o corpo. Aqui, as identidades são fluidas em vez de estanques, o género é auto-determinado em vez de pré-determinado. Esta performance teve lugar dia 13 de março na Black Box do Centro Cultural de Belém (CCB) a propósito do festival Gaivotas ↔ Belém.

O entendimento e experiência desta performance não podem deixar de lado a relação de intimidade e cumplicidade que as performers Luara Raio e Acauã Sereia demonstram. O seu trabalho são as suas histórias de vida, sobrevivência e resistência. É a materialização do pensamento da arte e vida como uma e a mesma coisa desenvolvido durante os anos 60 do século passado. Luara e Acauã não trabalham (nem vivem) uma sem a outra. Acauã participou no processo criativo dos solos Raio Raio Lama Lama (Lisboa, 2019) e Manguba (Montpellier, 2020) de Luara, ao passo que Luara participou no processo criativo do solo Além de vocês o que tem pra comer hoje (Montpellier, 2021) de Acauã.

 A maneira como os seus corpos se enlaçam, desenlaçam, a forma como desenvolve o jogo de vozes e olhares são fundamentais par dar corpo ao conceito de Apocalypso. Através destas qualidades, montam no chão um pequeno altar repleto de imagens e ornamentos, velas e incensos. Invocam uma certa atmosfera religiosa e ritualística. Devido ao contexto político e social das performers, emigrantes brasileiras racializadas queer a viver na Europa, o seu imaginário é muito influenciado pela espiritualidade de religiões afro brasileiras como o candomblé. O texto que é dito nesta cena tem como base um tarot de nove arcanas criado por Luara. Estas arcanas foram pensadas tendo em conta os materiais e os elementos que atravessam o corpo. Uma dessas cartas é o orixá Exu, um orixá masculino que representa a força da sexualidade. O espaço desta performance é muito vivo. A cenografia e o figurino são muito estimulantes visualmente: cores excêntricas na maquilhagem, nas vestes e nos múltiplos panos/toalhas que compõem o cenário. Salta à vista um detalhe curioso: o leão e a leoa que estão representados na toalha que reveste um tronco de madeira e que no final da peça é utilizada como bandeira. É impossível não fazermos a analogia destes animais com os animais, de outra condição, que estão em cima do palco. A simbologia do leão e a da leoa assenta muito bem nas performers, podemos até imaginar a representação de um ser leão-leoa e associá-la às artistas. A luz está muito bem trabalhada. Os vários tipos de luzes utilizados exploram vários ambientes, intensidades e tonalidades. A solução técnica de colocar microfones no chão resultou muito bem. Os sons captados por estes microfones deram à cena proximidade com o público estimulando a atenção do mesmo.

Luara refere um espaço “onde as paredes se amolecem”, onde os seus corpos começam “a transpirar de leve” enquanto os seus “orifícios se lubrificam relaxados.” Na relação entre os corpos, a boca e a saliva têm uma relevância significativa para a construção do movimento. A coreografia nasce e parte daqui. As suas faces são transfiguradas pelos gestos fortes que fazem na cara da outra, um jogo que explora a flexibilidade, a pressão e o relaxamento dos músculos. A saliva escorre por todos os lados, podendo ser vista como o elemento aglutinador visceral da relação que está aqui a ser partilhada. Os corpos movimentam-se sempre em simbiose, o movimento de uma é sempre influenciado pelo da outra. A coreografia procura explorar a metamorfose e a transformação do corpo, a relação entre ser humano e animal, colocando em cima da mesa interrogações filosóficas e políticas sobre o que é um ser (corpo) humano, o que é um (corpo) animal, quais as suas diferenças e semelhanças. Torna evidente que, tal como o género, são coisas sobre as quais temos influência direta, coisas sobre as quais tomamos ação, não se tratam de coisas que se possam definir ou padronizar.

Apocalypso relembra-nos que “estamos no meio da encruzilhada”, que é necessário estarmos juntas e partilhar as nossas histórias. Nesta performance, o apocalipse é pensado como possibilidade de destruir os véus e as ficções da ideologia colonialista. Nas palavras de Luara, esta destruição procura ativar o corpo como “lugar cartográfico de atravessamento, onde performatividade, espiritualidade, ficção e feitiço se cruzam e turvam seus limites.”

Rodrigo Fonseca (1995, Sintra). Estudou na António Arroio, é licenciado em História da Arte e mestre em Artes Cénicas pela FCSH/UNL. Foi cofundador da editora CusCus Discus e do festival Dia Aberto às Artes. Além da Revista Umbigo, faz crítica musical na plataforma Rimas e Batidas. É técnico de som especializado em concertos e espectáculos e artista residente da associação cultural DARC.

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