Under the rug – João Pedro Trindade no Sismógrafo
Como num jogo, num percurso labiríntico cujo caminho e camadas de significação procuramos desvendar, deixamo-nos envolver pela experiência imersiva que João Pedro Trindade (n.1990) nos oferece em Under the rug, 2022[1]. Preenchendo o espaço total da sala de exposições do Sismógrafo (Porto), constatamos a preocupação e importância atribuídas ao aspeto cenográfico: desde o momento em que entramos em Under the Rug, apreciamos uma encenação mediante um desenho instalativo que cria um percurso no qual vinte e dois tapetes de rua recolhidos pelo artista entre 2013 e 2022, criam um espaço habitável que envolve o visitante. Habilmente suspensos a partir do teto e a alturas diversas, alguns dos quais estendendo-se em rolos pelo chão, os tapetes intrigam-nos e surpreendem-nos. Peças de chão e de aparente banalidade, destaquemos a decisão do artista em apresentá-los num plano vertical, quais telas sem molduras que contornamos, observamos e lemos de vários ângulos e até do seu reverso. Como um prolongamento do chão vermelho do Sismógrafo, as cores quentes e térreas dos tapetes despertam a nossa atenção e se num primeiro contacto com a obra cremos estar perante pinturas monocromáticas, logo nos surpreendemos pelo material, padrões e pela apropriação do objeto tapete pelo artista, ao qual atribui novas leituras e significações.
Aparentemente idênticos, cada tapete mantém a sua autonomia enquanto obra de arte, criando no seu conjunto um ecossistema de experiências sensoriais e emotivas. Há uma componente íntima em Under the rug, através da qual João Pedro Trindade nos revela a atenção que confere aos objetos com os quais se cruza diariamente, num trabalho minucioso de collecteur, de quem observa, recolhe e preserva sempre com atenção à imagem. Convocando o espaço urbano para o espaço expositivo, João Pedro Trindade transporta-nos para o exterior apropriando-se e descontextualizando elementos da cultura urbana e industrial. A função dos tapetes anteriormente dispostos à entrada dos edifícios, recebendo-nos, altera-se na presente instalação, através deles passeamos pelas ruas das diferentes cidades de onde foram recolhidos pelo artista e observamos as marcas que neles se exibem fruto do desgaste do tempo e da ação humana. As cores que desbotam resultante da exposição solar – vermelho, laranja, amarelo e verde -; os passos da multidão; os quadrados das calçadas e os seus padrões impressos, quais fósseis como uma segunda pele gravada na superfície; os rasgões e imperfeições das telas, originam marcas e sobreposições que criam imagens, memórias sedimentadas da vida quotidiana que João Pedro Trindade seleciona e transporta para o agora. Atribuindo um novo sentido à expressão esconder debaixo do tapete, Under the rug revela-nos as cicatrizes resultantes da adequação e modelação do material à matriz, num processo em que o artista autonomiza o suporte que recebe a imagem ou o relevo do que lá estava através do contacto, o contacto com o real que produz marcas que contam histórias. O olhar atento de João Pedro Trindade pelo mundo urbano em constante mudança e a observação cirúrgica do quotidiano atingem o seu pleno num corpo de trabalho revelador das camadas que se acumulam num determinado objeto e através do qual nos confere um novo olhar sobre o mesmo mobilizando os nossos sentidos. Há uma provocação e intenção do artista ao propor ao espectador que observe elementos do quotidiano mediante uma descontextualização e manipulação que alteram a atenção e perspetiva sobre os mesmos, sublinhando as características menos evidentes, os elementos que geralmente passam inadvertidos[2]. Em Under the rug o visitante surpreende-se não só pelo processo de transformação e de reutilização dos tapetes pelo artista, mas sobretudo pelo modo como torna visível o que normalmente no nosso quotidiano não entendemos como positivo. O vazio da modelação que nos fala de ausência e de perda, marcas que se tornam signos nas superfícies dos tapetes, peças de arqueologia urbana que imortalizam formas e padrões das ruas. Tapetes que resumem o simbolismo da morada.
[1] Inaugurada a 5 de março, a instalação Under the rug encontra-se em exibição no Sismógrafo até dia 9 de abril.
[2] AGRA, Emídio – Under the rug, João Pedro Trindade. Folha de sala.