Entrevista a Diego Bragà sobre Geografia do Amor
Geografia do Amor é um trabalho artístico de Diego Bragà que assumiu várias formas: filme, álbum e performance. O filme (2020) participou no Sundance Film Festival e está destacado no Op-Docs do The New York Times. O álbum (2022) foi produzido por Chico Neves, produtor de artistas como Elis Regina, Milton Nascimento e Gilberto Gil. A performance estreou dia 10 de Fevereiro deste ano (tendo estado em exibição entre os dias 10-12) no Polo Cultural Gaivotas, em Lisboa. A música é de Rui Lima e Sérgio Martins, a performance de Diego Bragà e ambos os músicos, o desenho de luz de Filipe Pureza, o cenário e pintura de Martîm e a assistente de cenografia de Andrea Paz. As várias materializações deste projeto são fruto da herança deixada pelo seu tio Ricardo Wagner Braga. Estivemos à conversa com Diego Bragà, responsável pela criação das várias facetas deste projeto.
Rodrigo Fonseca – De que maneira é que o álbum Geografia do Amor comunica com a performance Geografia do Amor?
Diego Bragà – Geografia do Amor tem de ser visto como um grande atlas erótico construído a partir da herança que o meu tio me deixou. São quase mil objetos, sendo metade cartões postais provenientes de vários países (mais de quinze). Este é o chão da Geografia do Amor. As músicas do álbum, Perfume da Luz e Fogo de Amor, são tocadas durante a performance. Foram criadas mais três músicas para este espectáculo, dois originais e um cover. Estas criações partilham a mesma ideia ou conceito: o melodrama, o choro que vira melodrama. Refiro-me aos momentos em que se torna impossível falar devido ao choro ininterrupto, momentos onde a fala se torna repetitiva e soluçada, momentos que ganham uma qualidade musical. A ideia desta performance é ser um show musical.
RF – Como foi trabalhar com Rui Lima e Sérgio Martins? Além de serem os responsáveis pela música, foram também performers. De que maneira é que influenciaram o teu processo criativo?
DB – Foi um encontro muito bonito. Ambos são músicos com carreiras consolidadas em Portugal na área da criação musical para dança contemporânea. Foi muito interessante porque somos de gerações diferentes e países diferentes. Tanto o Rui como o Sérgio fizeram uma leitura muito rápida daquilo que queria desde o início. O meu objetivo era fazer uma missa pagã em homenagem às nossas mortas e mortos, às nossas ancestrais, não só minhas como também deles e do público. Abriu-se rapidamente um imaginário de rock and roll! Coloquei este imaginário num espaço espiritual, ao passo que eles enquanto ateus colocaram-no num lugar psicadélico! Achei esta mistura deliciosa. Como referi somos de gerações muito diferentes. A minha geração traz consigo a Lady Gaga e a Britney Spears, a deles traz o rock e os Nirvana. Este encontro foi essencial para transformar a Geografia do Amor numa performance que não se limita a traduzir o conceito do álbum.
RF – Acabam por se complementar.
DB – Sim. Há uma particularidade na herança do meu tio que é muito interessante. Fui desde criança uma pessoa muito afeminada e feminina. Considero-me uma pessoa não binária e na herança do meu tio está latente uma homossexualidade homoerótica cis. Ter junto comigo homens cis ajudou-me a pensar sobre esta relação. Chegámos à imagem de um concerto de esperma! Esta imagem para mim correspondia à sexualidade e à ancestralidade erótica que relacionava ao meu tio.
RF – De que forma é que a espiritualidade, a mitologia e a magia comunicam com o arquivo do teu tio? Levantas várias questões esotéricas durante o teu discurso e durante a tua performance. Como é que manifestaste estas qualidades na coreografia e nos cenários?
DB – Na herança do meu tio não há nada de mágico. A única coisa que tem porventura esse caráter era o momento em que se vestia de bruxa da Disney para mim. Uma vez por mês perseguia-me pela casa! Não diria esotérico… Prefiro a palavra espiritual. Falando do cenário, tentámos criar uma utopia coloria, algo que resgatasse o olhar da infância. Lembro-me do olhar puro do meu tio quando descobri que ele tinha AIDS. Era um olhar amoroso e nada julgador.
RF – Achas que esta performance pode ser vista como um manifesto queer, um manifesto não binário?
DB – Pode. Não foi feito como tal, mas claramente é. Sou muito fiel ao que penso e àquilo que o universo me diz, não crio com um pensamento político anterior. Não tenho um sentimento de revolta mas entendo obviamente a revolta das outras e compro-a! Porém, para mim sempre foi uma naturalidade, nunca foi um problema.
RF – Porque foi sempre aceite no seio da família.
DB – Pelo meu pai não, por exemplo. Ainda hoje lhe é estranho e foi sempre muito óbvio, desde criança. Na minha casa da minha mãe e do meu tio convivíamos com pessoas politicamente díspares: militares de esquerda e de direita, comunistas, padres, prostitutas… Havia uma naturalidade de aceitação. Sinto esta performance como um manifesto quando as pessoas vêm conversar no final do espetáculo chorando. Trata-se de um manifesto muito honesto, não faço tentativas para que seja triste ou engraçado. A minha única preocupação foi homenagear a ancestralidade das pessoas que vão assistir porque a minha já consegui fazer de alguma forma. Através do luto. A Geografia do Amor celebra todas as mortas (todes es mortes).
RF – Quando denominas esta performance como um ato que celebra “as nossas mortas ancestrais queers’’ referes-te a quem morreu devido à sua sexualidade e à sua não definição de género?
DB – Com certeza. A comunidade LGBTQI+ é brutalmente assassinada todos os dias. Este espetáculo procura falar da ancestralidade desta luta e das pessoas que morreram por ela, por ser quem eram.
RF – Já tens próximas datas de apresentação?
DB – Ainda não, mas a ideia é fazer uma tour!