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Cemiterra-Geraterra: Miguel Palma no Parque Quinta dos Remédios

Enquanto admirador do trabalho de Miguel Palma, fiquei algo surpreso ao primeiro olhar para Cemiterra-Geraterra. Ainda que nela visse a admiração do artista pelo brutal, a fisicalidade industrial, havia também um idealismo que o opunha ao seu restante trabalho, um lado demasiado previsível.

Esta primeira vez foi aquando da inauguração da peça no passado dia 22-02-22 (qual capicua) no Parque Quinta dos Remédios, em Loures. Tinha chegado mais cedo ao local e tive oportunidade de ver a peça sem contexto. Mais tarde, na inauguração, o artista esteve presente. Contou-nos uma história: na infância tinha o hábito de enterrar objetos para, um ano mais tarde, quando os desenterrasse, ver neles materializada a passagem do tempo. Cemiterra-Geraterra é uma recriação deste ato primário, rememorativo – disse-nos que o trabalho terá sido enterrado pouco depois da morte do pai em 1991, altura em que também se espalhava a Guerra do Golfo, numa manifestação ilustrativa de uma maior vontade de esconder do que mostrar. Mesmo assim, havia algo que não conseguia compreender: a frieza metálica do objeto, ainda que elegíaca, possuía este contexto emocional, pessoal e profundamente sensível que lhe parecia dissonante, deslocado. A obra foi desenterrada em 2000. Foi esse o ano em que nasci. Palma afirmou que para quem cresceu antes da data, 2000 parecia um ano impossível, utópico, portador de esperança. Pelo egoísmo do ato de nela me rever de algum modo, acho que foi aí que finalmente me fez sentido, esse planeta insuflado, forte, pesado, onde se compreende a vida e a morte, que detém a passagem do tempo na oxidação do seu aço acastanhado. Por trás dele está o enorme caixão metálico com que foi tapado e enterrado – esconde-se para revelar o que durante tempo ocultou, a inevitabilidade de um objeto que já se afirmou e renasceu, protegendo e aceitando-o.

Ferrosa, ainda que ao longe se assemelhe à madeira das árvores que a rodeiam e acompanham nas curvaturas da sua, um pouco mais eterna, existência, a escultura não replica a natureza. É impossível, e ela sabe disso. Tudo é hoje intervenção. Veja-se o próprio parque em que se insere, a sua construção com árvores dispostas, trilhos delineados, pensado paisagisticamente, recriando sempre uma ilusão de evasão, através da intervenção humana no terreno. Assim, realça-se o gesto maquinal, consequentemente humano, admitindo-se esta escultura que queria viver. Por entre os discursos cerimoniais que caracterizam a inauguração de uma escultura pública, percebi que, de algum modo, éramos vivos a olhar para um simulacro de vida – expectante, otimista – detentores de um bem que não podíamos oferecer.

É lamentável vermos a sua reinauguração, 22 anos depois, 2 dias antes do início de um conflito que poderá trazer consequências trágicas para a Europa. Aquele planeta ferrugento para que olhamos parece premonitório. É curioso recontextualizar, agora, as palavras finais de Palma: “Esta escultura tem um lado de estatuária que não gosto (…) Gostava mais de a ver enterrada.” Cemiterra-Geraterra lembra-nos que ver arte é, em si, um ato de empatia. Não a deixemos enterrar-se.

Cemiterra-Geraterra integra a programação CAM em Movimento e pode agora ser vista no Parque Quinta dos Remédios, em Loures.

Miguel Pinto (Lisboa, 2000) frequentou a licenciatura em História da Arte pela NOVA/FCSH, através da qual veio a realizar um estágio no Museu Nacional do Azulejo. Participou no projeto de investigação VESTE – Vestir a corte: traje, género e identidade(s), alojado pelo Centro de Humanidades da mesma instituição. Criou e gere o projeto a Parte da Arte, que pretende divulgar e investigar o panorama artístico em Portugal através de vídeo-ensaios explicativos.

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